“A Line Made by Walking” (Richard Long, 1967)
Uma linha feita, literalmente, pelo contínuo andar pelo mesmo lugar.
Em Tamil Nadu, no sul da Índia, quando você encontrar alguém no caminho, ele irá perguntar “onde está indo?”. É educado responder “eu estou simplesmente indo” ou “simplesmente” (summa), com um vago gesto com a mão na direção que você está indo. Isso é suficiente. Basta que você esteja simplesmente andando pelo caminho. Não é necessário que você dê uma razão. (SNODGRASS¹)
Capítulo 9 – Limiar (Threshold)
Para as discussões do capítulo, Coyne propõe focar o caráter “desfamiliarizante” dos dispositivos ubíquos em alternativa a uma visão mais voltada às “formas mais suaves e mais naturais de interação e de expressão”2 normalmente associadas eles.
Práticas Emergentes
Retornando ao tema do papel dos aparelhos de GPS em processos de deslocamento, o autor ressalta o condicionamento deles a um movimento utilitário, econômico, que se dá em um espaço racional, mapeado, euclidiano.
Como novas práticas interessantes em tal sentido, ele evoca noções como a de geocaching, “caças ao tesouro” nas quais um participante acrescenta uma coordenada/tesouro para que outro encontre (e continue o processo), assim como a de mapas colaborativos, cujas feituras pautam e são pautadas pelo caráter consensual entre os colaboradores, muitas vezes fugindo a lógicas “oficiais” de turismo – incluindo fotos pessoais, vídeos, mensagens, dicas, resenhas etc., ou mesmo cobrindo assuntos outros (conexões Wi-Fi, buracos, pontos de violência…) –, práticas que, aliadas à própria necessidade de calibração dos dispositivos, abririam caminho diferentes compreensões do ambiente.
Excursão e Retorno
Aprofundando o debate sobre o caminhar, Coyne remete à (bela) discussão de Adrian Snodgrass sobre a ambiguidade inerente a perguntas do tipo “como vai?” e “como vão as coisas?”: metáforas de movimento para estados (de saúde “físico” e “mental”) do ser.
Além do exemplo do summa (citação no início dessa postagem), Snodgrass atenta à ubiquidade do conceito de “O Caminho” (Tao) em culturas asiáticas, o “caminho-ismo”.
“Aqueles que andam sem rumo por um caminho são andados pelo caminho.” Você não segue simplesmente para onde o caminho leva, mas “o caminho e aquele que o caminha são um; eles vão juntos.” O trabalho do andarilho [wanderer] é “continuar se movendo, manter os olhos (e a mente) abertos, estar atento e receptivo” 3
O centro da discussão é a relação de familiaridade/”desfamiliarização” e retorno, o porto seguro versus o desconhecido e o estar de volta, o comum, o incomum, a estranhamento do antigo lar, o costume com o novo lugar – mesmo que temporário –, mudanças inerentes mesmo ao trajeto “quotidiano”, em diferenças que surgem naturalmente e causam estranheza, ou pela disposição do observador – cujos dispositivos desempenham um novo papel, ora ajudando a levar/instaurar zonas de conforto (a música no i-Pod, a foto da família no celular, o jogo que distrai) ou de perturbação (o telefonema/mensagem com más notícias, o alarme que atenta para um compromisso desagradável). Do rito transformador do cruzar de fronteiras ao olhar renovador do estrangeiro sobre o banal, que o revela/eleva, Coyne problematiza a visão e o ponto de vista, o som do lugar e dos que chegam nele.
Remetendo-se aos situacionistas do século XX (Debord, Nieuwenhuys e outros) e à derive/deriva deles como modo de re-conhecer os lugares, as novas táticas estariam para, seja no sentido do reconhecimento sensorial através do som, seja da fissura provocada por se carregar um objeto inútil, ampliar o engajamento com o corpo e modificando a relação com a paisagem.
Limiares
Na parte final do texto, Coyne chega ao tema central do capítulo: limites, bordas, cercas, fronteiras, transições, antigas portas e umbrais que agora se somam ao gerir do entrar e sair de zonas WiFi, de sinal telefônico, de GPS etc. Entrar num elevador só após finalizar a conversa no celular ou interrompê-la durante o trajeto? Limiares às vezes visíveis, às vezes não.
Na perspectiva do autor, o limiar seria um espaço de tomada de decisões, pontos alternados pela mudança de posição do observador (subir para ter uma visão mais ampla, avaliar o terreno) ou através dessas tecnologias (checar o mapa, telefonar pedindo informação), pontos visuais, mas também sonoros: a (re)orientação pela mudança de intensidade ou pelo descolamento do emissor/receptor, as interrupções, as dissipações, as reflexões ante obstáculos.
“Memorial do Holocausto” (Peter Eisenman, 2005)
Andar por ele é perder a referência. Mudar de posição é revelar novos padrões e caminhos.
Sobre postos de calibração e referências (na paisagem ou nas tecnologias), Coyne ressalta ainda a falta de ajuste, a incapacidade de se abrir ao novo e a imposição de um estado anterior, falta de diálogo e de “sintonia” física ou do pensamento. Questões importantes à própria produção de conhecimento. Para Hans-Georg Gadamer: “‘O horizonte é o campo de visão que inclui tudo que pode ser visto a partir de um ponto de vista particular.’ Se eu mudar minha posição eu tenho um horizonte diferente.”4 O encontro com o outro e a fusão de horizontes. A borda, o limiar entre um entendimento e outro.
“Wanderer above the Sea of Fog/Wanderer Above the Mist” e “Chalk Cliffs on Rügen” (Caspar David Friedrich 1818)
A pintura romântica de paisagens e a questão do ponto de vista e do limiar
Já ao fim do capitulo, Coyne evoca a figura do Trickster, a ambiguidade, o que tranzita, que cruza, que confunde, o espírito da estrada, o andarilho, o que não esta nunca armado, mas esta está sempre armando, relacionando-a aos dispositivos digitais ubíquos, a fusão e a transformação das mídias pervasivas, que ampliam de várias maneiras, mas também irritam quando falham.
Dispositivos ubíquos não só fundir invisivelmente nas práticas de caminhada e navegacionais. Às vezes eles também se apresentam como artefatos alienígenas e alienantes, tornando o ambiente não-familiar. Seu poder reside na capacidade deles de distorcer a paisagem dos encontros cotidianos, e desta maneira eles contribuem para o ajuste do lugar.5
¹ SNODGRASS; COYNE, 2006. p. 246 apud COYNE, 2010. p. 173
2 DOURISH, 2001. P. 189-190 apud COYNE, 2010. p. 169
3 SNODGRASS; COYNE, 2006. p. 247 apud COYNE, 2010. p. 173-174
4 GADAMER, 2004. p. 301 apud COYNE, 2010. p. 183
5 COYNE, 2010. p.185