Rob Kitchin
Professor e Pesquisador Sênior da ERC do National Institute of Regional and Spatial Analysis, Maynooth University, Irlanda.
A pandemia de coronavírus trouxe grandes desafios para os governos que procuram adiar, conter e mitigar seus efeitos. Além das medidas tomadas com os serviços de saúde, outras táticas disruptivas de saúde pública foram adotadas para tentar limitar a propagação do vírus e achatar a curva de contágio, incluindo distanciamento social, auto isolamento, proibição de eventos sociais, limitações de viagens, quarentena e lockdowns. Em vários países estas medidas estão sendo suplementadas por tecnologias digitais projetadas para melhorar sua eficiência e efetividade ao coletar big data granular e em tempo real. No geral, as tecnologias em desenvolvimento podem ser divididas em quatro categorias: rastreamento de contato, cumprimento de quarentena/permissão de movimento, modelagem de padrões e fluxo, e monitoramento de sintomas. O governo irlandês está usando duas destas categorias – rastreamento de contato e monitoramento de sintomas – em um único aplicativo, o “CovidTracker Ireland”. Neste pequeno ensaio, analiso o que é sabido sobre a abordagem irlandesa no desenvolvimento desse app e avalio se ele irá funcionar na prática.
CovidTracker Ireland
Em 29 de março de 2020, o Health Service Executive (HSE), órgão responsável pela saúde pública da Irlanda, anunciou seu plano de lançar um aplicativo de rastreamento de contato do Covid-19 em alguns dias. Poucos detalhes foram fornecidos a respeito da funcionalidade ou arquitetura do app proposto, além de que seria similar à outros apps de rastreamento de contato, como o TraceTogether, de Singapura, usando conexão Bluetooth para identificar dispositivos próximos e portanto possíveis contatos, além de recursos adicionais para relatar a situação de bem estar. O HSE deixou claro que seria opt-in ao invés de participação compulsória, que o aplicativo respeitaria privacidade GDPR, sendo produzido com apoio da Comissão de Proteção de Dados, e que seria limitado apenas ao período de resposta ao coronavírus. Não foi dito quem desenvolveria o app além de que ele seria um esforço intergovernamental.
No dia 10 de abril, o HSE revelou mais detalhes com respostas às questões pelo Broadsheet.ie, afirmando que o agora nomeado CovidTracker Ireland vai:
“Auxiliar o serviço de saúde ao rastrear contato para pessoas com casos confirmados;
Permitir que o usuário relate como está se sentindo, ou acompanhe seus sintomas todos os dias;
Fornecer links para recomendações caso o usuário apresente sintomas ou se sinta mal;
Oferecer ao usuário informação atualizada sobre o vírus na Irlanda.”
Além disso, eles reiteraram que o aplicativo “será projetado de forma que maximize privacidade assim como valor para a saúde pública. A privacidade pelo design é um princípio central na construção do CovidTracker Ireland – que funcionará de forma voluntária e completamente opt-in.” Não houve menção sobre a abordagem adotada, mas o uso do logo da HSE no site da PEPP-PT (Pan-European Privacy-Preserving Proximity Tracing) indica que essa foi a arquitetura adotada, uma iniciativa que afirma que sete países estão usando sua abordagem, com supostamente outros 40 países envolvidos em discussões.
Até 22 de abril, o CovidTracker Ireland está em desenvolvimento, com o HSE declarando em 17 de abril que ele estava passando por testes com o objetivo de ser lançado no início de maio, quando se planeja a suspensão de algumas restrições governamentais.
Críticas e preocupações
Desde que foi anunciado, preocupações surgiram em relação ao CovidTracker Ireland, especialmente partindo de representantes do Digital Rights Ireland e do Irish Council for Civil Liberties. O problema principal tem sido a falta de transparência na abordagem tomada. Um aplicativo será lançado para uso sem nenhum detalhe publicado sobre sua abordagem e arquitetura adotados, consulta com stakeholders, teste piloto por membros do público, e feedback e avaliação externa.
Existem preocupações que uma abordagem centralizada, no lugar de uma descentralizada, será tomada, e não há indicação que o código será aberto para escrutínio, senão pelo público, ao menos por especialistas. Não está claro se o app está sendo desenvolvido internamente, ou se foi contratado um desenvolvedor externo e se o contrato inclui cláusulas acerca da posse dos dados, sua reutilização, venda e propriedade intelectual. Não há detalhes sobre onde os dados serão armazenados, quem terá acesso à eles, como serão distribuídos, ou como poderão ser usados. Há incerteza se o app será totalmente compatível com a GDPR de forma proteger totalmente a privacidade, especialmente considerando que um relatório Data Protection Impact Assessment (DPIA), que é legalmente requerido antes do lançamento, aparentemente ainda não foi feito. Este DPIA permitiria que experts independentes avaliassem, validassem e fornecessem feedback e alertas.
Críticos também estão preocupados que o CovidTracker Ireland combine o rastreamento de contato e o monitoramento de sintomas, que vem sido feitos separadamente em outras jurisdições. Aqui, dois tipos de informação pessoal estão sendo reunidos: proximidade física e medidas de saúde. Isso apresenta um risco potencial à privacidade ainda maior, caso eles não sejam protegidos de forma adequada. Além disso, críticos estão apreensivos com a possibilidade do CovidTracker Ireland se tornar um “super app“, que estende suas ambições e objetivos iniciais. Aqui, o aplicativo possibilitaria algo chamado “control creep“, a partir do qual ele começa a ser usado para além de suas funções originais, como o cumprimento de quarentena/permissão de movimento. Por exemplo, Antoin O’Lachtnain, do Digital Rights Ireland, especulou que talvez tenhamos um aplicativo que monitora Covid-19 que é “mandatório, mas não compulsório para pessoas que lidam com o público, ou que trabalham em um espaço compartilhado”.
Como discutido por Simon McGarr, o fracasso em lidar corretamente com essas críticas e em ser aberto e transparente significa que “o lançamento do app irá, inevitavelmente, ser prejudicado por imediatamente virar tópico de diversas questões e desinformação que poderiam ter sido evitadas simplesmente por deixar de lado o impulso institucional do Estado por sigilo.”
No âmbito internacional, há um certo ceticismo a respeito do método sendo usado pelo app para rastreamento de contato, e se as condições críticas para funcionamento existem. Bluetooth não tem a precisão necessária para determinar dois metros ou menos de proximidade, e usar janelas de tempo para indicar contatos significativos pode excluir contatos fugazes, porém importantes. Também há questionamentos a respeito de representatividade (por exemplo, 28% das pessoas não possui um smartphone na Irlanda), qualidade dos dados, confiabilidade, desvios e falsificação, e definições de regras e parâmetros. As limitações técnicas provavelmente podem levar a um número grande de falsos positivos, o que pode levar a um nível de sinal-ruído muito difícil de lidar, levando a medidas de auto isolamento desnecessárias e potencialmente sobrecarregando o sistema de testes.
Há a inquietação que o uso massificado de um aplicativo de rastreamento de contato esteja sendo feito às pressas sem ser demonstrado que ele serve ao seu propósito. Além disso, o aplicativo só será útil na prática se houver um programa de testagem massiva para confirmar que um indivíduo carrega o vírus e se rastreamento é necessário; e se 60% da população participar, garantindo alcance de quem teve contato próximo (cerca de 80% dos proprietários de smartphones). O monitoramento de sintomas depende de relatos dos usuários, que carece de rigor e, como mostrado pelos testes, uma grande parte da população que foi testada por ter os sintomas teve resultado negativo. Isso pode levar a um grande número de falsos positivos e é duvidoso que esse tipo de informação sirva como guia para o rastreamento de contato.
No momento, enquanto a Irlanda aumenta sua capacidade para 100 mil testes por semana, talvez seja necessário aumentar esse limite ainda mais. O Edmond J. Safra Center for Ethics da Universidade de Harvard sugere que, nos Estados Unidos: “É necessário realizar 5 milhões de testes por dia até o início de junho para garantir uma abertura do isolamento segura. Esse número deve aumentar com o tempo (idealmente até o fim de julho) para 20 milhões por dia para reabrir a economia. Nós reconhecemos que até este número talvez não seja alto o suficiente para proteger a saúde pública.” O valor equivalente para a Irlanda seria de 300 mil testes por dia. Em Singapura, apenas 12% da população usou o aplicativo TraceTogether, o que levanta dúvidas se 60% da população da Irlanda irá participar, especialmente se o público está cético após a cobertura da mídia que destaca seus problemas de privacidade, segurança e uso dos dados.
O CovidTracker Ireland vai funcionar e o que precisa acontecer?
É unânime que rastreamento de contato é um pilar para lidar com pandemias. Assumindo que problemas com privacidade e proteção de dados podem ser resolvidos de forma adequada, seria animador pensar que o CovidTracker Ireland pode fazer uma diferença na contenção do coronavírus e impedir quaisquer outras ondas de contágio.
Porém, existem razões para duvidar que rastreamento de contato e monitoramento de sintomas feitos por um aplicativo podem ter algum impacto, a não ser que:
Sua abordagem técnica seja segura e liberdades civis sejam protegidas;
Exista testagem numa escala grande o suficiente para que casos potenciais, incluindo os falsos, sejam tratados com rapidez;
O governo consiga convencer a população a participar em grande número.
O governo também pode fornecer smartphones para os cidadãos que não os possuem, como foi feito em Taiwan. Persuadir a população a participar será um desafio, já que o governo não está sendo transparente o suficiente no momento em explicar a abordagem tomada, a especificação técnica pretendida pelo aplicativo, como ele funcionará na prática, seus procedimentos para fiscalização e como protege liberdades civis.
É essencial que o governo siga as orientações do European Data Protection Board, que recomenda fortes medidas para proteção de privacidade, que a minimização do armazenamento e uso dos dados seja praticada, que o código-fonte seja publicado e revisado regularmente, que haja fiscalização e prestação de contas, e que tenha limites claros para evitar “control creep”.
Se mal implementado, o aplicativo pode ter um efeito negativo na confiança pública e gerar medidas de saúde possivelmente contraproducentes. Como consequência, o Ada Lovelace Institute, um dos maiores centros de pesquisa de inteligência artificial do Reino Unido, sugere que governos sejam cautelosos, éticos e transparentes em seu uso de aplicativos de rastreamento de contato. A Irlanda faria bem em seguir seus conselhos.
Tradução: Catarina Lopes; Supervisão: André Lemos