Ensaios / In Vitro: Dossiê Covid-19

Plataformas digitais, Wearables e a versão algorítmica da COVID-19

Por Elias Bitencourt

This disease is being done (Annemarie Mol, 2002)

Neste ensaio, vou abordar o modo como as plataformas digitais de saúde e as tecnologias vestíveis (wearables) agenciam a construção de uma versão algorítmica da COVID-19¹. Na escalada sociotécnica pela cura, por testes e ferramentas que auxiliem o controle do contágio, plataformas como Apple, Fitbit, Garmin e instituições de pesquisa têm se unido na tentativa de construir modelos computacionais capazes de predizer a manifestação do SARS-CoV-2 mediante a dataficação do sono, das atividades físicas e do ritmo cardíaco.

Vou recorrer à noção de “multiplicidade da doença” de Annemarie Mol (2002) como chave ontológica para refletir sobre como as práticas de dataficação corporal, ao construírem versões alternativas da doença, promovem desdobramentos importantes da configuração do fenômeno, exigindo olhares mais atentos acerca das eventuais consequências práticas das ações de combate à pandemia protagonizadas por plataformas digitais.

A seguir, exploro brevemente as estratégias de elaboração do modelo algorítmico DETECT – Digital Engagement & Tracking for Early Control & Treatment –, o maior estudo de predição da COVID-19 disponível. O intuito é discutir a doença sob a ótica das práticas que subjazem à construção do modelo computacional que quer fazer vê-la a partir de métodos de dataficação do corpo e previsões em tempo real (nowcast). Ao olhar para as materialidades digitais que produzem a COVID-19, me motiva saber: a) qual o objeto de interesse das ações que se destinam a fazer ver a manifestação do vírus mediante o uso de wearables e b) quais as consequências práticas essa versão algorítmica da doença produz em termos de políticas públicas. 

Vírus múltiplos

Em seu livro Multiple Bodies, Annemarie Mol (2002) nos lembra que nenhum objeto, nenhum corpo e nenhuma doença são singulares. Cada um desses fenômenos é construído a partir de diferentes práticas, orientadas por variados interesses, organizados a partir de agendas diversificadas. Consequentemente, se práticas múltiplas produzem versões múltiplas do fenômeno, analisá-lo requer atenção cuidadosa para “qual versão se escolhe investigar”, “como a versão escolhida é produzida” e como as formas de produzi-la também endereçam políticas distintas para o fenômeno.

A proposta de Mol sugere que os aspectos práticos, os eventos e as ações que se organizam em torno da patologia (as materialidades) são rastros necessários à compreensão das versões possíveis da doença para além da fisiologia médica ou dos aspectos discursivos presentes nos relatos médico-paciente da clínica médica. Nessa perspectiva, a doença se torna parte daquilo que é feito na prática, ou ainda, a doença se faz ver tanto pelo que produz de efeito quanto pelas ações que a constroem. 

Ao propor que as doenças assumem múltiplas versões Mol não está se referindo às variadas interpretações possíveis do fenômeno – perspectivismos epistemológicos –, tampouco quer separar os domínios ontológicos que produzem a enfermidade. A ideia de versões múltiplas quer fazer ver que distintas práticas de abordagem da doença – a clínica médica, o laboratório, a epidemiologia e a indústria farmacêutica, por exemplo –, ao se organizarem a partir de objetivos e cadeias de ação igualmente particulares – protocolo de cuidado, exploração fisiológica, políticas públicas, tratamentos – produzem diferença no modo como a doença é construída em cada uma das redes por onde passa.

As múltiplas versões, portanto, não concorrem entre si. Elas acrescentam camadas de complicação na manifestação da patologia enquanto fenômeno social amplo, convocando olhares mais atentos aos fluxos das ações que permitem pensar a doença em seu processo de elaboração.

Construindo a versão algorítmica da COVID-19

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Fig.1. Estudos DETECT e TemPredict para predição do Sars-CoV-2 via wearables. Fonte: Imagens de divulgação disponíveis em: https://innovations.stanford.edu/wearables e https://ouraring.com/how-oura-can-help-monitor-sickness

Entre as tentativas de prever a COVID-19 mediante wearables, destacam-se os estudos DETECT e TemPredict (Fig. 1). A proposta da TemPredict é capitaneada pelo Instituto de Neurociência Rockefeller, pela Universidade da Califórnia e pela plataforma de anéis inteligentes OURA. Embora os resultados preliminares da TemPredict indiquem a capacidade de prever a presença do vírus com até 24h antes da manifestação, o estudo está em etapa inicial e conta com número ainda limitado de voluntários. 

A iniciativa DETECT, entretanto, é fruto do conglomerado que reúne as três maiores marcas de wearable do mercado (Fitbit, Apple e Garmin), plataformas de Business Intelligence no ramo da saúde (Care Evolution) e instituições de pesquisa (Universidade de Stanford e Scripps Research). Em contraste com o TemPredict, o DETECT faz uso de bases de dados mais amplas e parte de um modelo preditivo da manifestação do vírus Influenza já testado com Fitbits, o que confere à iniciativa o status de maior estudo de predição algorítmica para a COVID-19 no momento.

Ainda restrito aos territórios com maior base de usuários de vestíveis – Estados Unidos e Canadá – o DETECT é uma rede composta por plataformas digitais, dispositivos vestíveis, cientistas de dados, usuários e pesquisadores de centros de referência internacional. A proposta consiste em um aplicativo para smartphone – MyDataHelps (Fig.2) – que agrega os dados de Apple Watches, Fitbits e Garmins em uma base única. As bases são compatibilizadas com auxílio da plataforma Care Evolution e alimentam o modelo algorítmico DETECT, cujo delineamento, gerenciamento e interpretação fica a encargo dos pesquisadores da Universidade de Stanford e da Scripps Research, uma das mais influentes instituições de pesquisa em biomedicina e tecnologia, segundo a revista Nature.

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FIG. 2. Telas do aplicativo My Data Helps que agrega os dados dos wearables e alimenta o algoritmo DETECT. Fonte: Imagens divulgação App Store disponível em: https://apps.apple.com/us/app/mydatahelps/id1286789190

O algoritmo DETECT foi desenvolvido inicialmente como parte de um experimento para previsão de surtos de vírus com 200 mil usuários de Fitbit norte-americanos entre 2016 e 2018. Na ocasião, os valores de 47 mil sujeitos residentes em cinco estados norte-americanos, com histórico de uso consistente de Fitbits, orientaram a construção de linhas de base para variações de sono e frequência cardíaca. Posteriormente, informações do CDC (Centers for Disease Control and Prevention) sobre a ocorrência de viroses causadas por Influenza foram comparadas às linhas de base. 

O cruzamento das informações do CDC e os dados corporais dos sujeitos permitiu identificar e categorizar os padrões das alterações corporais compatíveis aos sintomas da doença notificadas pelos wearables. Em cada estado norte-americano analisado, a contagem de casos infectados e a proporção de usuários com dados corporais fora do padrão foram submetidas a um modelo de regressão estatística. O intuito foi avaliar o grau de interferência das variações desses padrões corporais na predição da virose. Os resultados do modelo foram publicados em Janeiro, na revista Lancet (RADIN et al., 2020).

Para a COVID-19, o algoritmo DETECT foi incrementado com dados de testagem do SARS-CoV-2, auto declarações de sintomas respiratórios e tratamentos eventualmente ministrados. Em entrevista recente ao The Washington Post, os pesquisadores de Stanford responsáveis pelo estudo informaram que pela análise das alterações cardíacas de Fitbits já é possível detectar o SARS-CoV-2 antes da testagem positiva em 11 de 14 usuários. Os achados preliminares, segundo eles, sugerem que a variação cardíaca identificada nos wearables de alguns sujeitos apresentou padrões elevados em até nove dias antes das pessoas reportarem sintomas da COVID-19.

COVID-19 nowcast!

Conforme descritivo disponível em material de divulgação da Scripps, as estratégias de predição do DETECT que fazem ver a COVID-19 são baseadas na abordagem “nowcast“. Derivado da junção entre “now” e “forecast“, Giannone et al (2008) definem o termo como tipos particulares de predições, em tempo real, acerca de um futuro muito próximo e que é feita com base em dados retirados de um passado muito recente. Segundo os autores, a abordagem “nowcast” tem uma importância muito grande para a economia, uma vez que grandes índices-chave para a análise de investimentos (a exemplo do PIB) geralmente só se fazem disponíveis com algum atraso em relação ao cenário econômico imediato. 

A ideia do nowcast reside na construção de modelos estatísticos que sejam capazes de formalizar os critérios necessários para a leitura do fluxo de dados sobre um fenômeno em tempo real, permitindo a elaboração de cenários prováveis que instrumentalizem planejamento de ações e a reavaliação de políticas sempre que a realidade apresentar divergências em relação às previsões do modelo. Neste sentido, a motivação subjacente à elaboração de modelos nowcast não é aumentar a precisão das previsões em si, mas em aperfeiçoar a habilidade de avaliar e interpretar qualquer informação que venha a afetar significativamente a capacidade preditiva do modelo (BAŃBURA et al., 2013). 

O nowcast, portanto, quer fazer ver o fenômeno a partir da antecipação de cenários prováveis para que as decisões possam ser tomadas com menor risco, ou que possam ser revistas para minimizar os reflexos dos cenários previstos. No caso do DETECT, o foco não é obter confiabilidade para testagem de medicações nem acertar quando a doença irá se manifestar, mas entender quais são os fatores que interferem na construção da previsão da COVID-19 para que se possa pensar estratégias de gerir as consequências que ela irá impor no futuro breve. 

Modelando corpos para a versão algorítmica da COVID-19

O uso de estatística e modelos preditivos são procedimentos familiares tanto aos estudos clínicos controlados (CTS) quanto à epidemiologia médica. A diferença da estratégia do DETECT, no entanto, não está no caráter “preditivo” nem no uso de dados populacionais para fins de políticas públicas, mas na maneira como a elaboração do modelo algorítmico acoplado às tecnologias vestíveis acaba por fazer ver “corpo” e “vírus” de forma alternativa às práticas médicas. Em outras palavras, o DETECT difere pelo modo como as práticas (dataficação, business inteligence) e instrumentos tecnológicos (modelos computacionais, vestíveis, aplicativos, softwares de análise etc.) se organizam para produzir e doença e agir sobre ela.

Muito embora os padrões de sono e a frequência cardíaca sejam variáveis passíveis de incorporação em estudos médicos, a maneira derivada e agregada pela qual Fitbits e Apple Watches produzem esses índices corporais obedece a regras e objetivos distintos. Os dados que alimentam o DETECT são provenientes dos wearables, dispositivos inteligentes desenvolvidos para dataficar os hábitos e experiências corporais de maneira ampla e constante. 

O foco dessas práticas de dataficação por vestíveis reside na construção de uma inteligência a respeito dos modos de vida, de consumo e das reações diante de eventos específicos. Isso significa que, embora monitore digitalmente o comportamento de variáveis orgânicas, o modelo corporal presente nos sistemas das Fitbits e Apple Watches está subordinado às regras algorítmicas que têm como finalidade traduzir os hábitos do corpo em experimentos algorítmicos voltados ao mercado (BITENCOURT, 2019). A partir desses exercícios algoritmicamente controlados, as plataformas dos vestíveis podem antecipar as alterações de rotina corporais que importam aos planos de saúde ou avaliar as experiências de engajamento com serviços variados (business inteligence). 

Ao combinar práticas de dataficação corporal dos vestíveis e ferramentas algorítmicas de nowcast para prever contaminações pelo SARS-CoV-2, o DETECT recupera e adapta as versões corporais produzidas nessas plataformas (Fitbit, Apple, Garmin etc.) para a modelagem computacional do corpo que servirá de base à construção da versão algorítmica da COVID-19. 

Ao fazer ver o vírus a partir dessa versão (bio)infocomunicacional² do corpo, o DETECT se encontra atrelado também aos princípios político-econômicos que direcionaram a elaboração dos wearables e as plataformas das quais fazem parte. Isso não quer dizer que as políticas de antecipação de contágio e isolamento que os vestíveis oportunizam não sejam grandes aliadas em contextos onde ainda não há cura prevista. O que quero destacar é que as cadeias de ação que produzem a versão algorítmica da COVID-19 também trazem consigo as políticas de ação que almeja implementar sobre a doença e sobre os corpos. 

Políticas de saúde do Vale do Silício

O caráter excludente do setor de saúde norte-americano ficou ainda mais evidente durante a pandemia. A situação de Michael Flor é um exemplo emblemático da relação íntima entre o modelo público de saúde e as agendas econômicas do setor. O idoso de 70 anos e morador de Seattle recebeu uma conta de 1,1 milhão de dólares pelo tratamento que recebeu para COVID-19. Como é signatário de um seguro de saúde, a maior parte dos custos ficará sob a responsabilidade do plano. 

Casos como o de Michael Flor não são isolados e evidenciam o quanto o adoecimento coletivo dos corpos exige medidas de gestão de risco financeiro para os investidores no mercado de saúde. Estratégias de Business Inteligence como a Health Solutions da Fitbit e os serviços da Care Evolution, ambas empresas envolvidas na construção do modelo DETECT, são exemplos de ações que recorrem à dataficação corporal com o objetivo de prever cenários para otimizar os riscos dos serviços corporativos de saúde nos Estados Unidos e no Canadá.

Se os estudos clínicos se debruçam sobre variáveis corporais para encontrar caminhos seguros necessários à testagem de vacinas, e as investigações epidemiológicas se organizam ao redor de índices que permitam antecipar o fluxo de contágio; os wearables trazem a promessa de antecipar as consequências práticas mais amplas que os corpos contaminados podem oferecer ao mercado de saúde (identificação de comportamentos preditores de doenças crônicasaquisição de rotinas que favorecem a manifestação de outros males e custos de planos de saúde, por exemplo). Consequentemente, a versão algorítmica da COVID-19 elaborada pelo modelo DETECT não pode ser pensada sem levar em conta os objetivos e finalidades das práticas que se organizam ao entorno dos wearables, das ferramentas de business Inteligence de Wall Street e do modelo de negócio das plataformas digitais gestadas no Vale do Silício. 

Considerações finais

Em suas reflexões sobre as formações históricas, Foucault (2000, 2002)  sinalizava que os modos de fazer ver (as visibilidades) e fazer falar (discursividades) de um período estavam atrelados ao que cada dispositivo quer fazer ver e falar à época. Ao assumirem o protagonismo das máquinas de fazer ver as doenças do século XXI, as infraestruturas algoritmicamente performativas podem estar a indicando que as versões digitais dos males atuais talvez digam mais sobre as formas de fazer ver do Vale do Silício e Wall Street e menos sobre as visibilidades dos hospitais, da medicina clínica, da medicina laboratorial ou da epidemiologia do século XX. Se a versão algorítmica da COVID-19 promovida pelo DETECT ainda não nos traz grandes esperanças de controle e cura para o SARS-CoV-2, ao menos pode fornecer indícios importantes para pensarmos sobre qual corpo e qual modelo de saúde pública o “mundo pós-pandemia” quer nos permitir ver e falar de agora em diante.

Notas

¹Seguindo a orientação terminológica da Organização Mundial de Saúde, usarei o termo “SARS-CoV-2” para me referir ao vírus e “COVID-19” para a doença. Para informações sobre a nomenclatura, ver: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-guidance/naming-the-coronavirus-disease-(covid-2019)-and-the-virus-that-causes-it

²O termo infocomunicacional foi cunhado originalmente por Lemos (2013). Sugeri a ampliação do conceito para (bio)infocomunicacional no intuito de acolher os agenciamentos algorítmicos na construção corporal (BITENCOURT, 2019).

Referências

BAŃBURA, M. et al. Now-casting and the real-time data flow. In: ELLIOTT, G.; TIMMERMANN, A. (Eds.). . Handbook of Economic Forecasting. [s.l.] Elsevier, 2013. v. 2p. 195–237. 

BITENCOURT, E. C. SMARTBODIES CORPO, TECNOLOGIAS VESTÍVEIS E PERFORMATIVIDADE ALGORÍTMICA Um estudo exploratório dos modos heurísticos de corporar na plataforma Fitbit. [s.l.] Universidade Federal da Bahia, 2019.

FOUCAULT, M. As Palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 

FOUCAULT, M. The birth of the clinic. London: Routledge, 2002. 

GIANNONE, D.; REICHLIN, L.; SMALL, D. Nowcasting: The real-time informational content of macroeconomic data. Journal of Monetary Economics, v. 55, n. 4, p. 665–676, 2008. 

LEMOS, A. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume, 2013. 

MOL, A. The Body Multiple: Ontology in Medical Practice. Durham & London: Duke University Press, 2002. 

RADIN, J. M. et al. Harnessing wearable device data to improve state-level real-time surveillance of influenza-like illness in the USA: a population-based study. The Lancet Digital Health, v. 2, n. 2, p. e85–e93, 2020. 

SCHÜLL, N. D. Data for life: Wearable technology and the design of self-care. BioSocieties, v. 11, n. 3, p. 317–333, 2016.