Ensaios / In Vitro: Dossiê Covid-19

Zoom e as transformações público/privado/íntimo durante a pandemia da Covid-19

Por Mario Carlón

Mario Carlón é pesquisador do Instituto Gino Germani da Universidade de Buenos Aires. Seu último livro, “Circulación del sentido y construcción de colectivos en una sociedad hipermediatizada“, pode ser baixado gratuitamente aqui.

1. Pandemia, sistemas midiáticos e o aumento da midiatização

A pandemia global de Covid-19 tem perturbado as interações  natureza/maquinismo/sociedade. O vírus, um agente microscópico, até onde sabemos, de origem natural, fez com que a natureza abandonasse o lugar que a modernidade lhe atribuiu, seja como recurso infinitamente explorável (capitalismo), seja como experiência da beleza natural (estética);  papéis em que a natureza foi sempre um outro. Seja um vírus natural ou não, o SARS-COV 2 nos lembra globalmente que não lhe somos alheios.

Essa irrupção, ainda que não derrube com o capitalismo (talvez até o fortaleça), afeta praticamente todas as áreas do desempenho social contemporâneo. Considerar exaustivamente seus efeitos é uma tarefa impossível, já que implicaria analisar cada espaço social afetado em particular.

A transformação que vivemos apresenta-se de forma aguda na área da midiatização, cujo aumento em todos os campos da vida social é visível. É uma aceleração da midiatização que gera uma complexidade crescente na vida social.

Neste contexto, todos os meios de comunicação parecem funcionar a cem por cento. E os Meios Massivos, começando pela televisão, parecem ter revivido, considerando que houve aumentos nítidos de audiência nos noticiários e nas revistas que atualizaram seu formato. O isolamento obrigou os indivíduos a passarem mais tempo em casa. E a necessidade de se informar sobre o desenrolar de vários temas, como a chegada do vírus da Europa à América do Sul, a quantidade diária de mortos e contaminados, o futuro das políticas públicas, das atividades que se pode ou não realizar, o contágio das celebridades, além da preocupação pela própria pandemia, aumentaram o consumo de meios massivos.

O mesmo aconteceu com o uso das Redes Sociais Midiáticas (Facebook, Twitter, Instagram, YouTube etc.), que nada mais fizeram do que ampliar a forma de ação já conhececida, como espaço de expressão, de (des)informação e de comunicação entre internautas, com suas capacidades de construir bolhas de informação e de ativar grupos que realizaram manifestações de rua de todos os tipos em nível global (incluindo anti-confinamento).

Portanto, no contexto atual, cabe como sempre a pergunta: esta é a novidade do acontecimento, aquilo sobre o qual os analistas devem prestar mais atenção se quisermos entender a especificidade do momento atual? Além de ser sempre necessário acompanhar como os meios de comunicação conhecidos operam (assim como sua interrelação), nossa tese é que a principal novidade se desenvolveu em outro lugar, em uma área que já vinha em expansão devido aos aplicativos de mensagem instantânea como WhatsApp e que podemos chamar do Underground dos sistemas midiáticos. Um sistema distinto dos Meios Massivos e das Redes Sociais Midiáticas que intervém profundamente na constituição, desenvolvimento e transformação dos vínculos públicos, privados e íntimos. Vejamos por um momento como conceituamos esses sistemas antes de nos ocuparmos do tema principal, que é como começou a circular o sentido do Underground para os outros sistemas midiáticos no contexto da pandemia.

O gráfico ilustra de modo esquemático o lugar do Underground no sistema de midiatização contemporâneo. Está localizado nessa área o telefone histórico e poderíamos colocar também os Correios, que são os antecessores dos atuais WhatsApp e Zoom, que intervêm intensamente nas trocas privadas e íntimas (nos referimos ao Zoom de modo genérico, ou seja, como representante de outras plataformas semelhantes como Google Meet, Webex ou Jitsi). O que nos interessa é que os meios que se encontram no Underground têm sido adotados com o objetivo de estabelecer interações massivas durante a pandemia por múltiplos indivíduos, coletivos e instituições, desde a família até as instituições educacionais, passando por empresas e os poderes do Estado. E que seu uso tem produzido certos efeitos imediatos. Destacamos entre eles: 1) complexificar ainda mais a circulação de sentido e 2) estabelecer uma nova etapa nas relações entre o íntimo, o público e o privado. O resultado desses processos é evidente: no que diz respeito aos tempos modernos e pós modernos que se caracterizaram pela hegemonia de meios massivos, eles aceleraram ainda mais a imersão de nossa sociedade na contemporaneidade.

2. Casos

Exemplificamos o que estamos dizendo através da análise de dois casos nos quais mostraremos como o sentido circula do Underground, em particular do Zoom, aos meios massivos e às Redes Sociais Midiáticas. Isso ocorre de dois modos: a) vertical/horizontal (de “cima para baixo” e de “baixo para cima”, apresentando momentos de circulação vertical) e, b) de modo transversal (de “dentro para fora” e de “fora para dentro” de atores/enunciadores sociais, como indivíduos, coletivos, mídia e instituições).


Caso Professora UNLP: Em 2 de julho deste ano, o jornal Ámbito Financiero publicou a notícia cujo título era: “Revolta por maus-tratos de uma aluna por docente da Universidade de La Plata”. O subtítulo da notícia é “O vídeo divulgado no Twitter mostrava a professora da UNLP maltratando uma estudante que havia se queixado de não conseguir escutá-la devido ao WiFi”. Um vídeo registrou o ocorrido na aula através de uma plataforma, provavelmente gravado com um telefone, e foi compartilhado por um aluno em sua conta no Twitter com um texto irônico: “Os melhores professores estão na UNLP. Advogados respeitosos”. O post rapidamente ultrapassou 500.000 visualizações,  recebeu apoio de outros estudantes que manifestaram não ser a primeira vez que algo do tipo acontecia com essa professora e um comentário na página do Centro de Estudantes do Facebook. O grupo que dirige o Centro divulgou o nome da docente envolvida e manifestou que já tinha contatado a aluna para que ela realizasse uma queixa contra ela na universidade. Ainda em 2 de julho, a notícia foi publicada por um veículo nacional de Buenos Aires, o jornal Ámbito Financiero. Podemos dizer que o sentido circulou de “baixo”, no Underground, até as Redes Sociais Midiáticas (Twitter) e daí para os Meios Massivos. Esquematicamente, podemos visualizar esta circulação entre diferentes sistemas midiáticos da seguinte forma:

Ademais, o sentido circulou a partir de uma esfera pública, porém restrita (uma sala de aula universitária) até “fora” nas mesmas redes sociais (o tweet do aluno, o comunicado do grupo do Centro dos Estudantes), e mais além (até os meios massivos e a sociedade no geral). Ou seja, foi aumentando sua circulação pública, o que é um dos principais efeitos que a midiatização pode ter na vida social.

Caso Trotta: no contexto atual de forte polarização da política argentina, em que um setor predominante do governo nacional, representado pela vice-presidente e ex-presidenta do País, Cristina Fernández de Kirchner, está há anos enfrentando o principal holding de comunicação do país, o jornal Clarín, esse jornal publicou em 25 de agosto uma notícia intitulada: “Nós e eles: o áudio em que o ministro Nicolás Trotta se une aos opositores de Larreta para não abrir escolas na cidade” (a notícia foi publicada pelo jornal La Nación em 26 de agosto e repercutida em canais de televisão). O subtítulo da nota diz: “Foi em um Zoom. O governo nacional tem que autorizar o projeto de ‘espaços digitais’ que começaria na próxima segunda-feira, e ao qual os sindicatos se opõem”. A notícia relata que “vazou” um áudio de uma reunião que o Ministro da Educação do país, Trotta, teve por Zoom com professores do sindicato UTE-Ctera. O áudio foi publicado pelo jornal Clarín em sua página digital e um registro audiovisual, que permite interpretar claramente que a gravação foi realizada com um celular, foi publicado pelo jornal La Nación. Em ambas as notícias, afirma-se que no vídeo o ministro diz que conta com “eles” para enfrentar uma política que pretende levar a cabo o governo da Cidade de Buenos Aires (o Chefe de Governo da cidade é Horacio Rodríguez Larreta, da mesma aliança política que o ex-presidente Mauricio Macri). O interessante do caso é que o que publicaram Clarín e La Nación é um “vazamento” do que um ministro do país expressou durante uma conversa pelo Zoom com um sindicato de professores. Novamente, o sentido circulou verticalmente (de “baixo” para “cima”, do Zoom para os meios massivos), e neste caso também circulou logo através das Redes Sociais Midiáticas e dos grupos de Whatsapp.

Como no caso anterior, o sentido circulou de forma “transversal”, de “dentro para fora” (a partir de uma reunião entre o Ministério e os sindicatos até os meios de comunicação corporativos), chegando a outros atores sociais não envolvidos na conversação. Deste modo, alterou-se, outra vez, a esfera em que acreditavam participar os envolvidos na comunicação.

3. Aceleração da midiatização contemporânea e redefinição das relações entre o público e o privado por novas formas de circulação de sentido

É importante notar que as duas cenas, antes do Covid-19, ocorriam predominantemente numa situação “cara a cara”, sem mediatização. E se agora um fragmento delas circula por outros sistemas mídiáticos e chega a outros atores/enunciadores sociais, isso se deve à midiatização contemporânea que permite um registro material do que aconteceu mesmo que o espaço em que essa comunicação ocorreu seja considerado “privado” pelos atores participantes na interação. Este é um dos principais efeitos da digitalização. Um dos que pouco se fala: a materialização dos circuitos de circulação de sentido que favorece a produção de “saltos hipermidiáticos” (de um sistema para o outro, verticais-horizontais). Assim, os casos analisados pretendem ilustrar como são gerados processos de circulação de sentido que frequentemente ultrapassam esses limites devido ao processo de materialização da midiatização,  mesmo que essas interações ocorram no Underground, composto de aplicativos e plataformas destinadas a interações majoritariamente privadas e íntimas. E que, ademais, eles  estabelecem circuitos de circulação transversal (de “dentro para fora” e de “fora para dentro” de coletivos, mídias, indivíduos e instituições) com consequências inesperadas para os participantes da comunicação. Esses processos produzem transformações radicais no que diz respeito à midiatização moderna e pós-moderna, pois afetam a forma de circulação espaço-temporal do sentido em nossa contemporaneidade.


Traduzido por André Lemos e Catarina Lopes