Desinformação amplia os efeitos da pandemia e regulação existente tem efeitos limitados
por Frederico Oliveira
A pandemia do coronavírus é acompanhada por uma epidemia de fake news, também letal. Os conteúdos falsos colocam a população em risco ao promover descrença com a ciência e desobediência às ações de combate à COVID-19. Diante da incerteza e do colapso entre os discursos religioso, político e científico, surgem condições para o uso político da desinformação em busca de uma reescrita da história. Os agentes transmissores da epidemia de fake news estão em locais diversos: das profundezas do WhatsApp à Praça do Três Poderes, do grupo da família à entrevista concedida por uma deputada federal.
Desde antes dos primeiros casos no Brasil, o coronavírus é ora esvaziado de sua letalidade, outrora apresentado como arma química, e as estratégias para seu enfrentamento passam da abertura de igrejas a remédios milagrosos. A negação, no entanto, não tem efeito contra uma doença que já matou mais de 280 mil pessoas no mundo, o que não impede que cada vez mais conteúdos falsos sobre a COVID-19 circulem. Estratégias de regulação e punição parecem ser o único remédio para conter a letal epidemia de desinformação.
Mensagens falsas que parecem verdadeiras, as fake news são produzidas intencionalmente para influenciar pessoas e grupos em prol de um interesse específico. Tais conteúdos têm um grau de facticidade e sua intencionalidade de enganar, como já discutiam Tandoc, Lim e Ling (2017), e parecem verdadeiros porque fazem menção a documentos e especialistas para ampliar sua credibilidade. É o caso das mensagens de “especialistas”, “médicos que atenderam em Wuhan” e semelhantes, que circularam amplamente no WhatsApp no início da pandemia. Atualmente, para provar que caixões vazios estão sendo enterrados, faz-se uso de supostos vídeos e imagens antigas. No entanto, quando se analisa esses documentos citados como prova, observa-se que são manipulados ou não se sustentam.
Sua produção e circulação são pensadas para que o maior número possível de pessoas as acesse. Uma pesquisa publicada em 2018 na Science, desenvolvida por Vosogui, Roy e Aral, apontou que conteúdos falsos circulam muito mais do que informações verdadeiras. As mensagens falsas mais compartilhadas na amostra estudada alcançaram de 1.000 a 100.000 pessoas, enquanto conteúdos verdadeiros dificilmente atingiram 1.000 usuários. O sucesso das fake news se dá pela utilização de bots, a natureza das plataformas utilizadas para seu compartilhamento – o Facebook, Instagram e Twitter têm feeds gerenciados por algoritmos, enquanto os grupos do WhatsApp oferecem criptografia de ponta-a-ponta, se tornando uma deep web de bolso – e pessoas com posicionamentos políticos semelhantes – e a repetição frequente das mensagens falsas em diversos formatos.
Falsos enterros
Enquanto o país abre suas valas coletivas para sepultar as mais de 8.500 vítimas do coronavírus, mensagens falsas que circulam no WhatsApp denunciam o enterro de caixões vazios. Estaria em curso uma conspiração para inflacionar o número de mortos pela COVID-19. No Amazonas, o colapso do sistema de saúde é acompanhado por descrença e desalento: diante do ataúde fechado, familiares pedem para que os caixões sejam abertos, para confirmarem que seus parentes estão sendo enterrados. Uma dupla violência, que resulta da ampla circulação de conteúdos falsos e da incapacidade – e, também, conivência – de plataformas de redes sociais de internet e de governos em punir o compartilhamento de mentiras.
Em entrevista à rádio Bandeirantes em 29 de maio, a deputada federal da base governista Carla Zambelli (PSL-SP) disse que caixões vazios têm sido enterrados no Ceará, um dos estados mais afetados pela COVID-19. A deputada disse ter visto uma imagem em que uma mulher carregava um ataúde com apenas um dedo, o que indicava a ausência de um corpo – trata-se de uma captura de tela de um story do Instagram, que está entre as imagens mais compartilhadas nos mais de 500 grupos de WhatsApp monitorados pela UFMG em 27 (3º lugar) e 28 de abril (15º lugar). O Radar Aos Fatos demonstrou como o tweet de Zambelli teve importância na circulação dessa fake news. O governo cearense disse que irá processar a deputada. Zambelli regularmente dissemina informações falsas: no ano passado, disse que uma loja Havan era da filha de Dilma Rousseff, e que fazia alusão à Cuba. Infelizmente, no entanto, a distribuição de conteúdos falsos sobre o coronavírus não se restringe à base política, mas encontra no WhatsApp condições que facilitam sua viralização.
O aplicativo, que tem mais de 2 bilhões de usuários no mundo, promoveu mudanças em sua interface e funções para reduzir o compartilhamento de conteúdos falsos sobre a COVID-19. O limite de encaminhamentos de conteúdos foi ampliado – agora só é possível encaminhar uma mensagem recebida para um contato por vez –, na busca de reduzir a quantidade de informações falsas que circulam no app. De acordo com a empresa, uma ação semelhante que foi realizada em 2018 – em fase de testes – e implementada em 2019 diminuiu em 25% o número total de mensagens encaminhadas pelo aplicativo no ano passado. No entanto, essa estratégia é questionada por pesquisadores da UFMG.
Por meio de aplicações que simulam o toque na tela, ou de scripts feitos em apps de automação como o IFTTT e Tasker, é possível automatizar o envio de mensagens no WhatsApp. Ainda é possível interagir com a interface de programação de aplicativos (API) do mensageiro, que permite que se encaminhe uma mensagem específica para um número a partir de um link. Desse modo, a circulação orgânica de conteúdos é apenas uma parte do problema, que também envolve o uso de bots para ampliar a recepção de um conteúdo. Cabe considerar, contudo, se a pletora de informações que circula no app teria tanta importância se os grupos também não fossem espaços de homofilia: ali estão aqueles que pensam igual a mim, em que há liberdade de falar, até mesmo daquilo que não sei (efeito Dunning-Kruger). É preciso considerar, também, que a encriptação de ponta-a-ponta do aplicativo o torna uma deep web de bolso: apenas os participantes de uma conversa sabem o que ali foi compartilhado.
Remédios
“Com esse espírito, instruí meus ministros. Após ouvir médicos, pesquisadores e chefes de Estado de outros países, passei a divulgar nos últimos 40 dias a possibilidade do tratamento da doença desde sua fase inicial. […] Todos estão salvos. […] Sigamos João 8:32: ‘E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’”. (presidente Jair Bolsonaro em pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV, em 8 de abril de 2020).
Em 8 de abril, ao finalizar um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV conclamando a verdade religiosa, Bolsonaro disse que pregava o evangelho da hidroxicloroquina há 40 dias, remédio que ofereceria a salvação universal. A cura da “gripezinha” que já tinha matado 822 brasileiros envolvia a administração da hidroxicloroquina com a azitromicina, que teria sido eficaz em um estudo com pequena população. Mas, segundo mensagens do WhatsApp, a cloroquina é mágica e teria sido a receita de um plano de saúde para evitar o colapso de sua rede, em um estudo que começou sem autorização do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. Pouco tempo depois, um vídeo recomendava o consumo de água tônica, já que essa contém “quinina” – tal substância, no entanto, não tem relação com a hidroxicloroquina.
No WhatsApp, discutir a adequação da cloroquina no tratamento ao coronavírus era assumir oposição ao governo. Em Manaus, pesquisadores que analisavam o uso da droga sofreram ameaças de morte após encerrarem sua pesquisa em função da letalidade do remédio. Eles foram acusados de utilizar cobaias humanas e usarem altas doses da hidroxicloroquina para envenenarem os pacientes, com fins políticos. Tal acusação não foi feita ao estudo “efetivo” do plano de saúde paulista.
Vale apontar que, no início da pandemia no Brasil, as mensagens no WhatsApp sobre o coronavírus discutiam curas e receitas de prevenção caseiras, todas indicadas por “um médico do Hospital de Campanha em Wuhan” ou “especialistas”. Água morna, chá de erva-doce, zinco e vitamina C pareciam remédios adequados para enfrentar uma “gripezinha” inócuas para aqueles com histórico de atleta. Não apenas “especialistas” de outros países orientavam tais crendices, mas pronunciamentos presidenciais – que formatavam a ideia de uma doença pouco letal.
Esvaziamento
O caixão vazio de hoje foi o hospital vazio na semana passada. Antes disso, era o laudo falso com causa mortis COVID-19 para um atropelamento e para o primo do porteiro que foi trocar um pneu. A cloroquina foi substituída por um vermífugo, mas já foi água morna, vitamina C e chá de limão. Desde o início da pandemia, conteúdos falsos têm circulado nas redes sociais digitais e reproduzido a ideia de uma doença sem força, que era menos letal que a dengue, ou invenção de uma mídia que tinha perdido a audiência. É por isso que hoje o Brasil olha para seus caixões e não acredita que eles carregam seu povo, seus entes queridos.
Se, no início, prevaleciam receitas caseiras para a prevenção e combate à COVID-19, com a decisão de governos estaduais em favor do isolamento social – à revelia do governo federal – o foco dos conteúdos falsos se modifica. Os tratamentos caseiros indicavam ser uma doença simples, uma “gripezinha”, e com a quarentena, deram lugar a mensagens falsas com Ronaldo Caiado (DEM-GO), governador de Goiás, apanhando em praça pública e João Dória (PSDB-SP), governador de São Paulo, pichando o símbolo comunista. Esses políticos estariam se aproveitando da pandemia com fins eleitoreiros. Conforme o número de mortes da doença crescia, surgiam denúncias de laudos falsos, de hospitais vazios e, mais recentemente, dos enterros sem corpos.
Diante de uma mensagem que circulou amplamente, indicando que caixões vazios estavam sendo usados nos funerais para aumentar o número de vítimas da COVID-19, familiares que lidavam com a perda repentina de seus entes queridos para uma doença invisível pediram para ver os seus corpos. Tal mentira circulava no WhatsApp e também havia sido compartilhada por uma deputada federal em uma entrevista em rádio, sem que a própria emissora questionasse a afirmação. Por meio da deputada, um conteúdo foi retirado das valas dos grupos do aplicativo e levado a um veículo de massa.
Essa é uma outra dimensão das fake news: a credibilidade de quem compartilha tem importância, pois empresta facticidade ao conteúdo, por mais absurdo que seja. Quando Carla Zambelli ou Eduardo Bolsonaro compartilham determina mensagem, parte de seus seguidores acredita em sua veracidade e, também, importância. Eles também são gatekeepers, que selecionam a informação a que seus públicos têm acesso. Isso não implica que quem os acompanhe não questione o que compartilham, mas sim que eles pautam uma determinada agenda a seus seguidores.
Cada vez que um conteúdo falso desacredita a letalidade do coronavírus, menos se obedece ao isolamento social e mais pessoas se expõem ao vírus. Isso implica em uma maior demanda por leitos de UTI e, infelizmente, mais caixões. É por isso que estratégias de combate – por parte das plataformas – de punição ao compartilhamento de conteúdos falsos – tanto pelas plataformas como os governos devem ser implantadas. Não se trata de censura à liberdade de expressão, como dizem vozes políticas contrárias à CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) das Fake News, mas a busca pela garantia de informações de qualidade para tomada de decisões durante a pandemia.
Regulação
Por parte das plataformas, algumas ações já têm sido desenvolvidas: menor visibilidade a páginas que compartilham conteúdo falso, iniciativas de verificação e banimento de perfis. O Facebook anunciou que apresentaria um conteúdo verdadeiro aos que curtirem fake news. Desde 2018, a plataforma já possui uma rede de checadores, mas a quantidade de mensagens verificadas ainda é bem inferior à de informações falsas. O Twitter ampliou o uso de ferramentas automatizadas para avaliação de denúncias de conteúdo abusivo ou malicioso. No caso de tweets sobre a COVID-19, há verificação humana das mensagens. No WhatsApp, a criptografia ponta-a-ponta do app é um entrave para o uso de ferramentas de detecção automatizadas de conteúdo falso.
Iniciativas de regulação têm sido propostas por governos em todo o mundo. Em 2019, 16 países já possuíam leis contra as fake news, e esse número dobrou em função da pandemia do coronavírus. No Brasil, projetos de lei contra as mensagens falsas são apreciados na Câmara e no Senado – em 2018, já tramitavam 20 projetos sobre o tema. Projetos sobre o tema já foram apresentados – sendo que alguns já foram aprovados e são leis em vigência – em quase todos os estados da federação: Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. No entanto, a ausência de uma legislação federal impede a criminalização do compartilhamento de fake news, que é competência privativa da União, como aponta o art. 22 da Constituição Federal. Desse modo, os estados e o Distrito Federal só podem aplicar punições administrativas (multas), embora isso seja objeto de polêmica.
Agências de checagem foram criadas em Alagoas, na Bahia, no Ceará e no Maranhão. Pernambuco publica verificações sobre o coronavírus em redes sociais. No entanto, sua ação é limitada: as equipes são pequenas e sua capacidade de checar conteúdos é pequena, e os contéudos verificados não têm a mesma amplitude de circulação das mensagens falsas. Governadores do Nordeste têm desenvolvido um dossiê com as mais graves fake news sobre a COVID-19, para apresentar ao Congresso Nacional. Outros estados da federação também têm pensado em iniciativas de combate às fake news sobre a COVID-19. No âmbito federal, existe o Saúde sem Fake News, projeto do Ministério da Saúde que desenvolveu uma seção específica de verificações sobre a COVID-19. A iniciativa ainda oferece um serviço de checagem de conteúdos por meio do WhatsApp. Há, também, o Comprove, projeto de verificação da Câmara dos Deputados.
O combate à circulação de conteúdos falsos depende de ações articuladas entre governo, agências reguladoras, plataformas de redes sociais digitais, empresas de telefonia e outros entes da sociedade civil. Ações pontuais, como a CPMI ou o inquérito solicitado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), são importantes para revelar os contornos do problema no Brasil, mas não chegam perto de resolvê-lo. É preciso impedir acesso a sites que regularmente publicam conteúdos falsos ou caluniosos, bem como punir administrativamente e penalmente seus responsáveis. Esse processo envolve não apenas o estabelecimento de uma lei federal que criminalize a criação, produção e circulação de fake news, mas também operadoras de telefonia, que podem cortar o acesso a determinadas páginas.
É preciso ainda que as plataformas de redes sociais participem ativamente desse processo, bloqueando o acesso a perfis e links com mensagens maliciosas. Também devem ser transparentes em relação ao funcionamento dos algoritmos que governam os feeds. No caso do WhatsApp, é importante que a plataforma divulgue quantidade de grupos públicos e o número de mensagens que neles circula. Enquanto tais ações não sejam desenvolvidas, será necessário abrir caixões para escancarar a realidade de uma ameaça invisível.