Da janela do meu apartamento, vejo uma diversidade de outros lares. E pela janela de cada um, vejo pessoas, quase autômatos, em seus cotidianos, também quase autômatos. Ainda que mal veja as ruas por conta dos outros tantos prédios à minha frente, enxergo outros indivíduos caminhando, esperando ônibus, dirigindo carros e motos. Alguns conversam entre si, alguns vão calados, alguns falam consigo mesmos. Outros falam ao telefone (“estou indo”), outros mandam mensagens (“estou preso no engarrafamento”), e há ainda aqueles que preferem buscar informações na internet (“qual a agência do meu banco mais próxima daqui?”).
Não tenho dimensão total do que se passa lá fora, justamente porque a dimensão disponível é emoldurada pela janela e por limites geográficos – onde minha vista alcança, por exemplo. Tenho limites sobre o que percebo, o qual deve ter atuações nos meus limites cognitivos. Mas embora não possa ver o todo, sei de duas coisas: que todas as pessoas (com seus devidos dispositivos) estão em algum lugar (ou passam por vários lugares), e que todos esses lugares, mesmo que individualmente localizados, estão de certa forma conectados (seja por ruas, seja por redes de telefonia, por exemplo). Dessa forma, num caminho contrário ao da compartimentalização, compreende-se que certos fenômenos ultrapassam as barreiras geográficas e colapsam contextos diferentes – vide o elevador ou o próprio telefone fixo, ambos conectando elementos físicos distantes entre si e de difíceis acessos mútuos. A conexão proporcionada pela internet é apenas um desses fenômenos: pessoas e dispositivos eletrônicos, por conta de uma gramática de protocolos em comum, encontram-se, mesmo que temporariamente, em certo modo de ligação.
A conexão nas ruas
O fato de a internet ter “saído” ou “se desacoplado” do desktop – o velho computador imóvel onde se situaria uma certa “matrix” – trouxe perspectivas de usos e reapropriações peculiares tendo em vista a ampla adoção de tablets e celulares. Falamos tanto de mobilidade que a perspectiva de “entrar na internet” já não faz nenhum sentido – estamos nela o tempo todo, afinal. Assim, ela se faz cada vez mais sem grandes limitações de tempo e espaço, como se diluída, em todos os momentos do dia a dia, dentre computadores, pessoas e coisas.
Em meio à mobilidade e conectividade de objetos e a aplicações baseadas em sociabilidade (como redes sociais, por exemplo), emergem desse contexto serviços cujo mote de funcionamento se situa na consciência do onde e do quando de nossos contatos – em outras palavras, na percepção, muitas vezes mútua, das passagens e das demoras dos indivíduos. Quando olho pela janela, disse que vejo um mundo enquadrado mas, ao mesmo tempo, sei que há redes de pessoas (amigos, familiares, colegas de trabalho…) e objetos (celulares, tablets…) para além daquele enquadramento, as quais estão, de alguma maneira, em contato (talvez possamos pensar numa espécie de contato latente, mas certas informações estão lá, em seus perfis e páginas pessoais). Nesse universo, aplicativos como Locaccino, Latitude e Foursquare colocam em xeque quaisquer ideias de isolamento (físico ou temporal) na medida em que estão pautados pela localização específica de indivíduos segundo suas redes de contatos. Em outras palavras, atuam como mediadores em meio a processos variados de sociabilidade, tomando por base coordenadas geográficas associadas a informações pessoais.
Tendo isto em vista, um esclarecimento: não se trata de dizer que agora, somente agora, pessoas e coisas estão localizadas. Elas sempre estiveram e sempre tiveram um lugar, ainda que temporário. O que faz sentido de se problematizar são as tensões advindas da consciência sobre as localizações e movimentações – ou seja, pessoas sabendo dos modos de movimentação e coordenação de outras pessoas. É o saber onde e quando, de modo estrito (longitudes ou latitudes exatas) ou lato (encontra-se no bairro X, passou pela avenida Y), alocado em plataformas que disponibilizam certa perenidade sobre tais informações (ou um resgate de históricos), que estabelece essas tensões – as quais perpassam desde as motivações de uso até as preocupações sobre a privacidade.
Usos e apropriações
O que resulta desse cenário, num primeiro momento, são apropriações que desafiam a lógica dos desenvolvedores de diversos aplicativos. Considerando apenas os três exemplos citados, é possível perceber usos baseados em diferentes finalidades. Vejamos:
Recomendações de estabelecimentos: trata-se de buscar informações sobre o que visitar (cafés, lojas específicas, parques ou praças, museus etc.) dentro de um raio específico. Tais recomendações podem partir tanto de amigos (geralmente contatos importados de outras redes, como Facebook), como de totais desconhecidos (dicas de alguém que passou por em certo café ali e não gostou do atendimento, por exemplo).
Registros pessoais: servem para criar um histórico espacio-temporal das suas movimentações pessoais. O site Weeplaces, por exemplo, ajuda nessa empreitada, traçando uma visualizando dos caminhos percorridos por uma pessoa, tendo por base as marcações deixadas por ela no Foursquare.
Apropriações mercadológicas: no sentido de prover descontos ou outras recompensas financeiras para consumidores frequentes.
Explorações urbanas: próximo à ideia das recomendações, mas buscando novos caminhos a se explorar a cidade, partindo-se, por exemplo, do cruzamentos de dados entre contatos similares.
Manutenção do contato: ou, de certa forma, o estabelecimento de um sentido fático entre as redes de amigos e conhecidos. Avisos automáticos (“fulano esteve aqui”, por exemplo), dando a saber das dinâmicas alheias, já estabeleceriam, em tese, essa “toque” simbólico entre os indivíduos. O que decorre daí, enquanto interação ou representação, também está em jogo.
Referenciais identitários e a representação do eu
Dentre as mais diversas dinâmicas possíveis, uma questão que pede problematizações, além da própria localização (momentânea ou não), parece residir no estabelecimento de referenciais identitários (grupais ou individuais) e na maneira como usuários desse tipo de aplicativo lidam com a própria representação online. Há certamente sutilezas nos modos como as pessoas se apropriam de tais serviços, tanto quanto há dificuldades na aproximação e compreensão de suas abordagens. Por que realizar marcações georreferenciais? E por que não realizá-las? A priori, notam-se, tendo em vista essas duas perguntas, implicações nas dinâmicas interacionais – considerando tais marcações como uma base para ações interativas entre dois ou mais atores. Ora, uma das principais questões envoltas às redes sociotécnicas diz respeito justamente à conexão e à visibilidade mútuas (estar conectado a seus amigos e “vê-los” de alguma forma disponíveis e, em contrapartida, estar-lhes visível/acessível também). Que tensões na representação do eu podem resultar da disponibilidade e da “consciência” georreferencial? O que se mostra e o que se esconde em termos de localização (especialmente em tempo real)?
Pesquisas têm mostrado, por exemplo, que a utilização de serviços e redes sociais baseados em localização vincula-se ao dia a dia sem amplas transformações deste. Ou seja, usuários de tais ferramentas parecem não mostrar inclinações a modificarem seus rotas cotidianas apenas para se ajustarem às disposições técnicas ou às premiações (financeiras ou simbólicas) que podem vir de tais sites e aplicativos. Isso nos leva à uma compreensão, ao menos parcial, de que os referenciais identitários dessas pessoas estão alinhados à utilização de dispositivos ou lhes servem de balizas para suas atuações, especialmente tendo em vista a replicação de mensagens diversas (“estou aqui, passei por ali”) em outras redes – com efeito, Facebook e Twitter, por exemplo, são permeados de marcações georreferenciadas do Foursquare. O que deseja ser dito com tais marcações? Ou o que se desejar dizer com as não-marcações?
Igualmente atrelado ao cotidiano se dão os tipos de lugares visitados. Pesquisa recente mostrou que bastam apenas 4 pontos georreferenciados para se traçar um perfil específico de um usuário e diferenciá-lo de outro, chegando-se até sua identidade. Se considerarmos que as dinâmicas rotineiras alocadas no tempo (ir para o trabalho de manhã, sair para o almoço por volta do meio dia, frequentar lugares de entretenimento durante o final de semana etc.) são amplamente testemunhadas em aplicativos como tais, uma vez mais resta a pergunta: como se dá o gerenciamento do próprio perfil nessas redes georreferenciadas? O que os lugares frequentados/marcados/exibidos podem dizer ou não sobre seus usuários/visitantes?
Além desses tópicos, há sempre a velha querela da privacidade. Apesar de inquietações diversas sobre a disponibilidade de dados georreferenciados (o que chegou a dar lugar a iniciativas como o Please Rob Me, uma ironia com a prática do georreferenciamento), tais preocupações, de fato, parecem morar apenas no domínio do discurso, não chegando a constituir um elemento inibidor para marcações locativas. De qualquer forma, pesquisas têm observado formas de desvios e reapropriações em torno das localizações, o que mostra uma vez mais que a vontade de ser visto (e, portanto, o modo como se é visto) parecem estar acima sobre um certo receio em torno da visibilidade.
Para finalizar (ou para criar reticências)
Levantados estes pontos, restariam ainda muitas considerações a se fazer. Mas, claro, por questões de espaço, limito-me a pelo menos uma: não é que tenhamos novas práticas identitárias ou novas formas de representação dos indivíduos e coletivos. O que temos é uma disponibilidade técnica – uma mediação, pois – antes não existente, a qual reenquadra o panorama de nossa percepção – o que, por sua vez, bagunça um pouco a compreensão que temos sobre o que somos (ou pensamos ser), como nos dispomos publicamente (deliberadamente ou não), sobre como nos imaginamos enquanto emissores e interagentes e como nos imaginamos percebidos. Posso ter a ideia de que há algo mais que além da minha janela – e, quanto isso, só posso imaginar. Mas aplicativos de sociabilidade georreferenciada dão a saber exatamente aquela ligação que antes eu só podia imaginar. Neste exato momento, por exemplo olho para o celular e sei por onde passaram alguns amigos há pouco mais de trinta minutos, uma hora ou duas: Teatro Castro Alves, salões de cabeleireiro, lojas de conveniência em postos de gasolina, shoppings e faculdades foram alguns dos lugares praticados por eles. O que fizeram por lá, não sei. O que tais lugares representam na constituição de suas personas (online ou offline, pouco importa), quanto a isso posso fazer alguma ideia. E é verdade que quanto mais perguntas faço sobre tais mobilidades, mais interrogações surgem em torno dessas movimentações e de suas marcações. O que interessa, por certa perspectiva representacional, é que temos um jogo de visibilidade do eu antes indisponível (ou pelo menos não popularizado, ou não praticado). O que isso tem de implicações para as dinâmicas de sociabilidade e, consequentemente, para os gerenciamentos de impressão e representações identitárias? São perguntas que persigo. Deixo-as, por ora, em aberto.