Por: Frederico Oliveira – UFBA/LAB404
Rumores são relatos sobre eventos que seriam verdadeiros, mas não foram presenciados por quem os conta. As fake news, por sua vez, são conteúdos intencionalmente falsos que são pensados para circular amplamente, envolvendo uma rede de atores e seus afetos.
Antes de denúncias sobre a distribuição de mamadeiras eróticas para estudantes da educação infantil pública circularem no WhatsApp, o rumor sobre o “kit gay” já tinha sido formado em uma complexa rede de acontecimentos. Em 2011, o projeto Escola sem homofobia, executado pelo Ministério da Educação (MEC), sofreu intensa oposição da bancada evangélica no Congresso. Seu cancelamento, no entanto, não encerrou a narrativa: dela ainda se originam a Escola sem partido e a “mamadeira de piroca”.
O termo “kit gay” surgiu no discurso de alguns deputados da Frente Evangélica na Câmara – de oposição ao Governo Federal – e é adotado pelos jornais. Inicialmente, entre aspas, como reprodução das falas de entrevistados. Aos poucos, as aspas caíram e o termo tornou-se um modo de referenciar as supostas cartilhas produzidas pelo MEC. No YouTube, foram publicados vídeos produzidos para o kit. Aos poucos, esses vídeos – “Probabilidade”, “Torpedo”, “Encontrando Bianca” – circularam no Facebook e envolveram a comunidade de usuários. Com o cancelamento do projeto, o debate manteve-se nas redes sociais da internet.
A narrativa voltou a circular em períodos eleitorais. Na campanha presidencial de Bolsonaro, tornou-se uma bandeira: em uma entrevista no Jornal Nacional, o então candidato chegou a apresentar um livro que nunca fez parte do material organizado pelo MEC como o “kit gay”. Nas redes sociais, especialmente no WhatsApp, a narrativa retornou sob denúncias da presença da “ideologia de gênero” nas escolas. O Tribunal Superior Eleitoral exigiu que sites que ligavam o “kit gay” a Fernando Haddad não pudessem ser acessados. Isto, contudo, não foi o suficiente para encerrar a narrativa.
Obra apresentada em entrevista como o kit gay nunca foi distribuída pelo MEC
Outros casos como o do “kit gay” podem ser elencados: a suposta rede de prostituição infantil dirigida por Hillary Clinton em uma pizzaria nos Estados Unidos, o endosso do Papa Francisco à candidatura de Trump, os programas de televisão voltados ao público infantil que a cantora Pabllo Vittar vai apresentar, o dinheiro recebido pelos jogadores da seleção brasileira para perder os jogos da Copa do Mundo e as fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras. Em comum nessas narrativas está a existência de um dispositivo de produção e circulação de uma mensagem específica, criada intencionalmente com o objetivo de deturpar a realidade sobre algo e, desse modo, beneficiar alguém. Para isso, existe um planejamento desse conteúdo, do gênero textual em que ele será apresentado, suas formas de circulação e condições de recepção, buscando que tal ideia seja amplamente compartilhada.
Enquanto um rumor pode surgir a partir de interpretações equivocadas do contexto social ou de especulações, as fake news são conteúdos intencionalmente falsos, criados por grupos específicos para deturpar a percepção da realidade. Elas são disseminadas como rumores. Os meios pelos quais essas mensagens falsas circulam – por e-mail, pelas redes sociais de internet, por SMS ou boca-a-boca – determinam padrões de recepção, compartilhamento e difusão específicos. Nas redes sociais, por exemplo, a circulação das fake news é mais ampla, porque os algoritmos dessas plataformas possuem uma forma muito mais eficiente de nos fazer agir e nos afetarem emocionalmente, gerando adesão de grupos em torno de algumas narrativas. É na complicada relação entre a gestão dos afetos, o modo como esses conteúdos alteram o contexto em que estão envolvidos – sua agência – e os espaços em que eles circulam que está a chave para adequada análise das fake news como um fenômeno social.
Características do WhatsApp o tornam um espaço propício para circulação de fake news
A narrativa falsa sobre o “kit gay” surge na Câmara dos Deputados, em discursos de políticos de oposição ao Governo Federal. Há um contexto específico que orienta a criação dessa narrativa: o MEC executava o Escola sem homofobia e produzia um material que seria distribuído nas escolas, enquanto o Ministério da Saúde pensava numa história em quadrinhos para prevenção a DSTs, cujo público-alvo era composto por adolescentes Os dois documentos são apresentados como um só e, posteriormente, o assunto encontra espaço na imprensa. Há uma série de atores que, conjuntamente, formam um dispositivo e contribuem para que um kit que nunca existiu de fato ganhasse “vida”. Mas, até então, como um rumor.
É nas eleições de 2018 – e nas redes sociais de internet – que surgem as fake news sobre o “kit gay”. Grupos organizaram a criação de mensagens falsas baseadas na ideia de que existiria uma ideologização de crianças nas escolas públicas, buscando beneficiar os candidatos da direita conservadora. Para isso, criaram um dispositivo de produção – a mensagem falsa era redigida de modo que parecesse verdadeira, fosse de fácil compreensão e rápida leitura, além de ser alarmista, envolvendo emocionalmente quem a consome – e circulação – a formação de redes para distribuir conteúdos em mídias cujas características técnicas permitem que a mensagem se espalhe e se torne viral.
É o caso de redes sociais como o Facebook e o Instagram, cujos algoritmos dão maior espaço a conteúdos com maior número de curtidas e comentários. No WhatsApp, a possibilidade de encaminhar conteúdos em grupos, listas de transmissão e conversas privadas também abriu espaço para o compartilhamento das fake news – tanto que foram realizadas mudanças no aplicativo para combater esses conteúdos.
Ao considerar que as fake news são um dispositivo agencial que cria mecanismos de adesão – por afetarem quem os consome e compartilha – por meio da circulação de mensagens intencionalmente falsas, é possível desenhar uma abordagem metodológica para sua análise e, também, para o combate à desinformação. Esse dispositivo é uma rede que envolve a mensagem compartilhada – que pode configurar-se como meme – e suas condições de circulação – a materialidade dos suportes em que se compartilha tais conteúdos. Trata-se também de um dispositivo agencial, já que modifica contextos por meio de sua associação com outros elementos do tecido social. As fake news envolvem uma economia das emoções, ao afetar quem as consome e reuni-los em grupos de adesão. Elas são caracterizadas por sua intencionalidade: seu conteúdo, seu contexto de produção e circulação são pensados estrategicamente para garantir a sua ampla disseminação e beneficiar determinado grupo.