Pensatas

Elon Musk, um nepalês Gen-Z e um agitador do Partido da América entram num bar…

Pensata 404 – Edição 12 – por Gabriel Goes

Nossas pensatas são discutidas no Lab 404, mas refletem a opinião pessoal.


Esse bar não tem endereço físico: é o feed algorítmico global, onde timelines se cruzam, dados viram mercadoria e a política acontece em tempo real. Nele, um bilionário norte-americano, jovens manifestantes do Himalaia e agitadores digitais da extrema-direita compartilham o mesmo balcão, onde cada um bebe de uma infraestrutura diferente, mas todos alimentam a mesma máquina de extração de atenção e dados.

Vamos começar por Elon Musk, uma das figuras mais importantes do cenário político hoje. Lembro de ter conhecido da sua existência há cerca de 10 anos, época em que era possível acreditar que ele era apenas um empreendedor sagaz. Pareceu-me divertido, àquela época, que ele tivesse feito uma ponta no Homem de Ferro 2 de 2010.

Recentemente, em 4 de julho de 2025 (data em que é comemorado o Dia da Independência dos Estados Unidos), o CEO da Tesla e ex-Comissário do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) da administração Trump, lançou no X uma enquete sobre a criação do Partido da América. Na descrição, Musk justificava a proposta como um gesto de “independência do sistema bipartidário (que alguns poderiam dizer ser um partido só)”, em crítica à polarização entre Republicanos e Democratas.

O post viralizou rapidamente entre influenciadores e agitadores digitais, sobretudo figuras ligadas à base conservadora e à audiência republicana insatisfeita, que enxergaram no Partido da América uma possibilidade disruptiva diante do esgotamento bipartidário. Pesquisas mostram que quase 40% dos eleitores norte-americanos (e mais da metade do eleitorado masculino republicano) dizem estar inclinados a apoiar Musk como referência política, refletindo a força desses articuladores em converter insatisfação difusa em mobilização concreta.

Musk não fala apenas sobre independência; ele performa um ato político por dentro da infraestrutura informacional da qual é proprietário. O X, com seus cerca de 388 milhões de usuários ativos mensais (Business of Apps), não é apenas uma rede social e espaço de compartilhamento. Assim como todas as grandes plataformas, é um ambiente de mobilização, disputa e produção de legitimidade. Colin Koopman denomina esse poder derivado da gestão e circulação de dados de infopoder; ao controlar uma “praça pública global” (como o próprio diz) privatizada, acumula uma capacidade de ação política sem precedentes.

Se a sociedade contemporânea é estruturada por aquilo que Shoshanna Zuboff chama de capitalismo de dados, Musk ocupa o lugar paradigmático do capitalista de plataformas: alguém que não apenas administra empresas, mas que captura, organiza e monetiza as interações sociais como recurso político e econômico. A enquete sobre um novo partido, o que pode parecer apenas uma mera sondagem de opinião, funciona na verdade como um dispositivo de coleta de dados, modulação de afetos e teste de engajamento, um ensaio tecnopolítico em si.

De forma complementar, Lemos aponta que “os sistemas sabem muito pouco sobre nós (…), mas eles são eficientes e nos fazem funcionar de uma certa maneira. Sua eficácia e sucesso vêm justamente desse convencimento lento e progressivo.” Em outras palavras, somos sujeitos informacionais localizados em um espectro de poder, no qual alguns atores concentram maior capacidade de coletar e processar dados, enquanto outros possuem apenas margens limitadas de controle sobre essas informações.

Esse modelo de infopoder testado por Musk encontra paralelo mais recente no Nepal, onde X, Discord e TikTok formaram um triângulo de mobilização que precipitou a queda do premiê KP Sharma Oli. Enquanto o X oferecia vitrine internacional, o Discord operava como sala de guerra e o TikTok (que permaneceu ativo durante o banimento governamental e tornou-se o principal canal de vídeos mobilizatórios) distribuía vídeos virais que incendiaram a opinião pública, exemplificando como a política está sendo reconfigurada fora das instituições tradicionais. A tentativa do governo nepalês de banir redes sociais (interpretada como estratégia para silenciar vozes dissidentes), resultou na desestabilização da sua democracia, precipitada por mobilizações disparadas no Discord. Isso aponta para a plasticidade e a velocidade da política digital que pode desequilibrar sistemas políticos.

Tal situação escancara as portas do nosso bar algorítmico: enquanto Musk controla a torneira de dados no X, agitadores da extrema-direita agitam o copo nas mesas conservadoras, e jovens nepaleses bebem a dose que impulsiona sua revolta.

Segundo o India Today, “Quero uma metralhadora.” “Vamos nos reunir e jogar molotov no ministro do Interior e no primeiro-ministro.” “Matem a falsa liderança!” foram algumas das mensagens postadas em grupos do Discord criados e gerenciados pelos organizadores do movimento anticorrupção liderado pela Geração Z do Nepal.

O movimento do Nepal é atribuído ao grupo Hami Nepal (organização que estampa a imagem do canal do Discord com 160.000 membros, conforme imagem abaixo), um grupo que tinha como mote apoio em alívio de tragédias e empoderamento juvenil, se veem a brincar de Sid Meyer’s Civilization ou SimCity com todo um país no Discord, mas no mundo fora dos simuladores, existem consequências à vida humana e dezenas de mortos durante as ondas de protesto. Ironicamente, a página do Hami Nepal apresenta seus apoiadores e entre eles está a Coca-Cola e algumas outras organizações internacionais, como a Viber.

É isso o que restou da democracia? Debates organizados fora das instituições representativas, onde plataformas privadas substituem parlamentos e a violência online escala rapidamente para as ruas? Essa assimetria é central: plataformas globais, controladas por poucos capitalistas de dados, podem interferir diretamente em processos locais, reforçando o que Couldry e Mejias vão identificar como colonialismo de dados, uma nova forma de colonialismo que combina as práticas predatórias extrativistas do colonialismo histórico com métodos computacionais de quantificação abstrata. Diferente do colonialismo histórico, que apropriou terras e recursos, o colonialismo de dados apropria a própria vida social como recurso através de relações que permitem a extração massiva de informações para comodificação.

É importante notar como essas corporações estrangeiras controlam inteiramente os fluxos informacionais que organizam a política local, enquanto os dados extraídos alimentam algoritmos que podem posteriormente modular comportamentos e desestabilizar democracias. Essa coexistência de infraestruturas norte-americanas e chinesas evidencia que a dependência digital é um tabuleiro multipolar onde diferentes potências competem pela extração de atenção, dados e legitimidade política, onde a dependência infraestrutural externa pode comprometer sua soberania e os tornar vulneráveis a interferências político-econômicas mediadas por tecnologia lideradas estrangeiras. 

Mesmo sendo um dos maiores exportadores de tecnologia, é importante notar que os próprios EUA não escapam ilesos, também enfrentando instabilidades políticas decorrentes do uso intensivo das redes sociais (inclusive do próprio X). Campanhas de desinformação, polarização algorítmica e mobilizações extremistas mostram que o Norte Global igualmente sofre tensões mediadas por essas plataformas. A diferença é que, no Sul Global, a vulnerabilidade é agravada pela dependência infraestrutural externa: países como o Nepal não possuem alternativas locais, tornando-se reféns de decisões tomadas em Silicon Valley ou Shenzhen.

Se antes a política orbitava em torno de partidos, parlamentos e capitalistas industriais, hoje testemunhamos uma disputa de poder entre instituições democráticas tradicionais e atores que controlam vastos bancos de dados. Trata-se de um deslocamento em disputa, não consumado: o poder político passa a derivar também da posse de infraestruturas que organizam atenção e permitem operações algorítmicas em escala global. Agentes do capital de dados testam continuamente sua capacidade de mobilizar afetos, rearranjar agendas e, se necessário, desestabilizar democracias via plataformas.

Ao fim da noite no bar algorítmico, todos pagam a conta: Musk coleta insights para testar seu infopoder e criar novos produtos, agitadores digitais acumulam capital político entre suas bases e jovens nepaleses oferecem suas vidas e dados. O bar nunca fecha. E enquanto o papel das infraestruturas privadas de extração de dados continuar com poucas rédeas no seu papel político, ninguém sairá sóbrio desse balcão.

REFERÊNCIAS

Twitter statistics. Business of Apps, [s.d.]. Disponível em: https://www.businessofapps.com/data/twitter-statistics/. Acesso em: 20 set. 2025.

Couldry, N.; Mejias, U. A. Data Colonialism: Rethinking Big Data’s Relation to the Contemporary Subject. Television and New Media. v. 20, n. 4, p. 336–349, 2019.

How Discord became control room for Nepal’s Gen Z protests. India Today, 9 set. 2025. Disponível em: https://www.indiatoday.in/world/story/nepal-protests-discord-revolution-a-success-and-a-failure-2784606-2025-09-09. Acesso em: 20 set. 2025.

Kharel, Samik. ‘More egalitarian’: How Nepal’s Gen Z used gaming app Discord to pick PM. Al Jazeera, 15 set. 2025. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2025/9/15/more-egalitarian-how-nepals-gen-z-used-gaming-app-discord-to-pick-pm. Acesso em: 20 set. 2025.

Koopman, C. 2019. How We Became Our Data: A Genealogy of the Informational Person. University of Chicago Press.

Lemos, A. Privacidade e infopoder. In Santaella, L. (org). Simbioses do humano e tecnologias: Impasses, dilemas e desafios. São Paulo, Edusp/IEA-USP, 2022, pp.33-50

Nepal’s Social Media Ban Backfires as Politics Moves to a Gaming App. The New York Times, 11 set. 2025. Disponível em: https://www.nytimes.com/2025/09/11/world/asia/nepal-protest-genz-discord.html. Acesso em: 20 set. 2025.

Número de mortos em protestos do Nepal sobe para 72. CNN Brasil, 14 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/numero-de-mortos-em-protestos-do-nepal-sobe-para-72/. Acesso em: 20 set. 2025.

Nearly 40 percent of Americans say they would back Elon Musk’s third party if he creates one, poll finds. Independent, 5 out. 2025. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-politics/elon-musk-america-party-poll-b2782782.html. Acesso em: 5 out. 2025.

Van Dijck, J.; Poell, T.; de Waal, M. 2018. The Platform Society. 2018.New York: Oxford University Press, USA.

Zuboff, S. 2019. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs.