Neste texto o autor examina a relação entre imagens e imaginários da pandemia como uma metáfora do desespero que não encontra palavras.
Imagens e imaginários da pandemia
Juremir Machado da Silva é escritor, professor titular do PPGCOM/PUCRSe pesquisador 1B do CNPQ
1 Imaginário
Muito se fala sobre imaginário. Poucos o definem. Há na própria palavra, com a sua poesia implícita, uma espécie de convite à imprecisão. Um termo, de certo modo, que abre portas para o subjetivo sem as amarras de uma camisa de força conceitual. Pode-se, contudo, avançar no terreno das definições sem amordaçar. Gilbert Durand, o “papa”, como se diz coloquialmente, do imaginário, foi de uma simplicidade impressionante, num prefácio, ao descrevê-lo. A clareza é tamanho que autoriza a citação longa para padrões de razoabilidade:
O imaginário, isto é, o conjunto das imagens e das relações de
A tradução desse trecho do prefácio à terceira edição de As estruturas antropológicas do imaginário, é minha ou, como se diz, “livre”, como se alguma não o fosse.
imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens – nos aparece como o grande denominador fundamental onde se acomodam todos os procedimentos do pensamento humano. O imaginário é o cruzamento antropológico que permite esclarecer tal abordagem de uma ciência humana por meio de tal abordagem de tal outra ciência. Pois constatamos mais do que nunca, neste ano de 1969, as compartimentações universitárias das ciências humanas desembocando no gigantesco problema das visões estreitas e comprometidas, mutilando a complexidade compreensiva (ou seja, a única fonte possível da compreensão) dos problemas postos pelos comportamentos do grande macaco nu: o homo sapiens. Mais do que nunca reafirmamos que todos os problemas relativos à significação, logo ao símbolo e ao imaginário, não podem ser cativos, – sem falsificação – de uma única linhagem das ciências humanas. Todo antropólogo, seja ele psicólogo, sociólogo ou psiquiatra especializado, deve ter uma tal cultura que supere em muito – pelo conhecimento de línguas, de povos, da história, das civilizações, etc. – a magra bagagem distribuída por nossas universidades em formações de psicologia, sociologia e medicina. Para poder falar com competência de imaginário não é possível confiar nas limitações e caprichos da própria imaginação, mas possuir um repertório quase exaustivo do imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais apresentadas pela história, pelas mitologias, pela etnologia, linguística e literatura. Mais uma vez demonstramos a nossa fidelidade materialista a este frutífero mandamento bachelardiano, “a imagem só pode ser estudada pela imagem”. Só assim se pode falar honestamente em conhecimento de causa sobre imaginário e suas leis. A primeira constatação revolucionária que se faz com o autor de A Psicanálise do Fogo, assim como com o do Manifesto Surrealista, é que o imaginário, longe de ser a epifenomenal ‘louca da casa’, à qual o reduz sumariamente a psicologia clássica, é, ao contrário, a norma fundamental – a ‘justiça suprema’, segundo Breton – junto da qual a contínua flutuação do progresso aparece como um fenômeno anódino e sem sentido (Durand, 1992, p, XXII-XXIII)
Imagem 1: caixões enfileirados para enterro em vala comum em cemitério de Manaus durante o ápice da primeira fase da pandemia.
Imagem 2: praias lotadas no Rio de Janeiro em final de semana de pico das contaminações, hospitalizações e mortes por Covid-19.
Seria possível copiar aqui essas imagens. Também seria possível encontrar diversas imagens semelhantes de momentos diferentes. O leitor pode imaginar essas imagens, coladas que estão nas suas retinas pelos telejornais, e estabelecer o vínculo entre elas. A relação entre a imagem 1 e a imagem 2 é o que se pode chamar de imaginário. Uma soma complexa, multifatorial e paradoxal de situações diferentes tendo como denominador comum fundamental um vírus, uma doença e um comportamento do homo sapiens. As imagens falam pelas imagens. Uma fala da outra. Estão unidas pela tecnologia que as torna disponíveis a todos.
Longe de ser a “louca da casa” o imaginário é essa lei fundamental sem positividade nem negatividade prévias. Para ser entendido na sua “normalidade” e “patologia” reclama conhecimentos de psiquiatria, antropologia, sociologia, medicina, literatura e muito mais. Que loucos são esses que se amontoam ao sol enquanto ainda não se apagaram as imagens de caixões enfileirados junto a valas comuns? Que sapiens são esses homens que não temem a morte e ignoram a ciência? Que vitalismo é esse desafiando a morte sem o menor pudor?
2 Psicanálise do vírus
A imagem 1 exibe a tragédia consumada. A imagem 2 revela um desejo de viver contra tudo e contra todos, especialmente contra o vírus e contra autoridades. Ela mitologiza o real, ignora a concretude do inimigo invisível, recobre o fato com uma camada de ignorância despreocupada. O vírus traz um choque de realidade. Diz para quem puder ouvir que ele não é produto da imaginação e não pode ser dizimado com crenças. Reintroduz noções em cena que andavam em baixa: verdade, nexo causal, efeito. A verdade do vírus é que ele pode matar e não cede diante de medicamentos utilizados para outras doenças. Espera-se que a qualquer momento se descubra um remédio eficaz contra ele. As vacinas desenvolvidas reafirmam a relação de causa e efeito: a vacinação protege. Não se sabe ainda por quanto tempo. Só as vacinas poderão apagar a imagem 1 e multiplicar ao infinito a imagem 2.
Um dos imaginários ativados pelo coronavírus é o da conspiração. Trata-se de um amplo espectro de teses que vão desde a origem do vírus até supostos interesses em torno das formas de combatê-lo. Uma psicanálise do vírus pode trazer à tona a força da imaginação na produção do insustentável. Nada disso se explica por uma única linhagem disciplinar. Por que pessoas se aglomeram quando a lógica de transmissão do vírus passa justamente pela proximidade das respirações? Tomara que em breve o tempo do verbo seja alterado: porque as pessoas se aglomeravam quando a lógica do vírus passava justamente pela proximidade das respirações? Uma hipótese é esta: a descrença na verdade, reduzida à verdade de cada um, num superfaturamento da subjetividade, resumida no “tudo depende do ponto de vista”, solapou a base da cientificidade. Se a objetividade (leia-se verdade) é impossível, por força da corrosão subjetiva, como aceitaras recomendações da ciência? Se médicos discordam uns dos outros como saber quem tem razão? Volta-se ao velho tema: a existência de fatos externos ao olhar do observador e independentes da sua visão.
Confunde-se muitas vezes processos com resultados. Dificilmente alguém defenderá que a dengue é transmitida por formigas. A imagem 2 pode ser a cristalização do imaginário da supremacia da subjetividade. A imagem 1 traz de volta o vínculo entre causa e efeito, a morte pela ação do vírus ou pela falta de estrutura de atendimento para salvar infectados. Na busca da salvação para a humanidade ameaçada uma palavra ganha nova dimensão: ciência. O que é a ciência? O uso de uma faculdade humana: a razão. Destronada, maltratada por ter sufocado a emoção e, no seu viés positivista, rejeitado a subjetividade, a razão volta como bombeiro para apagar o gigantesco incêndio. Para cientistas, alheios ao subjetivismo da estação, nada de novo. Para muitos, uma surpresa. Contra o negacionismo irracional, sustentado por motivos políticos, ideológicos ou religiosos, chama-se a razão.
A voz de Gilbert Durand ecoa: “Para poder falar com competência de imaginário não é possível confiar nas limitações e caprichos da própria imaginação, mas possuir um repertório quase exaustivo do imaginário normal e patológico em todas as camadas culturais apresentadas pela história, pelas mitologias, pela etnologia, linguística e literatura”. Por um lado, eleva-se a importância dos especialistas. Por outro lado, para compreender a complexidade do fenômeno, requer-se uma soma de conhecimentos de áreas diversas. Há espaço para a visão focada e para a visão de conjunto. Só não há lugar para a irracionalidade. Lições de uma pandemia que ainda não acabou?
3 Caminhos cruzados
O enfrentamento da pandemia desencavou questões metodológicas e dúvidas éticas: por que médicos de vários países diriam que um medicamento não é útil se ele pudesse salvar? A pergunta oposta tem a mesma dimensão: por que médicos de diversos países diriam que um medicamento é útil se ele não pode salvar? Há possivelmente respostas mais verossímeis para a segunda questão do que para a primeira. A resposta à pergunta 1 pode passar pelos seguintes eixos: 1) não ter sido convencido pelas evidências dos colegas, 2) temer os efeitos colaterais das substâncias em questão, 3) integrar uma conspiração para sabotar um meio de preservar a vida de milhões de pessoas. Essa pergunta suscita outra: por que cientistas deixariam de aprovar um medicamento útil e barato havendo evidência robustas da sua eficácia? Conclusão: não parece haver lógica na recusa fora de uma conspiração.
A resposta à pergunta 2 oferece possibilidades mais pragmáticas: 1) pode-se entender que é o “melhor” oferecer algo em vez de nada para quem está infectado e quer ter a esperança da cura, 2) pode-se calcular que os efeitos colaterais são pequenos em relação à esperança de cura suscitada, 3) pode-se concluir que ao oferecer algo em vez de nada, um tratamento precoce ou preventivo, cria-se a condição necessária para que as pessoas saiam de casa e continuem produzindo.
Qual dessas respostas é mais lógica? Eis o ponto crucial. Na segunda também há um componente conspiratório. Uma articulação para expor às pessoas ao risco em nome da suposta necessidade de seguir em frente ou da preservação da economia. Sempre há a possibilidade de que os defensores desta ou daquela percepção do problema ajam por convicção, vale dizer, por “crença” no que estão abraçando. Volta-se ao ponto inicial: existem fatos externos ao ponto de vista do observador que possam ser comprovados objetivamente? A história da medicina indica que sim. Há medicamentos e procedimentos que funcionam comprovadamente para certas doenças. Não para outras. Antibióticos funcionam para combater bactérias, não vírus. Nada impede que testes sejam feitos para aplicar uma substância eficaz contra certas patologias em situações novas que exijam experimentações e descobertas urgentes. Tudo está em aberto. Nem tudo, porém, mostra-se possível.
4 Breves quase conclusões
O imaginário é uma construção coletiva involuntária. Não é uma escolha pessoal. O seu poder de contágio espalha os seus tentáculos.Há, sem dúvida, um poder de influência e contaminação no imaginário. Há também um limite ao imaginário: aquilo que depende de uma realidade objetiva. Por exemplo, a pandemia da Covid-19 é causada por um vírus, não por uma bactéria. Isso desencadeia uma série de consequências. Obviedades? Certamente. A negação do óbvio ativou a necessidade de enunciá-lo. Talvez a maior consequência da pandemia seja, por assim dizer, epistemológica: uma redescoberta da possibilidade da objetividade, entendendo-se por essa palavra a capacidade de provar que muitas coisas não dependem da opinião de cada, mas são fatos externos ao observador demonstráveis e descritíveis como tal.
Se a “imagem só pode ser estudada pela imagem”, como relembra Gilbert Durand, citando Gaston Bachelard, uma imagem pode falar de outra e ambas comporem um discurso absorvido, ou seja, um imaginário.A relação entre as imagens 1 e 2 do case abordado aqui indica uma continuidade no que deveria ser ruptura: a imagem 2 produz a imagem 1.O que dizem essas imagens conjugadas sobre a cultura brasileira nos anos mortíferas da pandemia do coronavírus, a Covid-19? Aí, sim, diferentes leituras são possíveis. Mas não todas. É impossível interpretar a imagem 1 como a expressão do êxito no combate ao vírus. Também não é possível ver a imagem 2, dentro do contexto da sua produção, como um exemplo acabado de responsabilidade individual diante do perigo. Essas imagens permitem muitas legendas. Não todas.
O vírus mortal sinaliza os limites do homo sapiens: fragilidade diante de um inimigo diminuto, dependência da sua racionalidade científica para produzir meios de defesa, subjetividade restringida por evidências externas alheias ao olhar particular de cada um e impostas a todas como uma realidade comum, impossibilidade de reduzir o externo à imaginação interna como se esta estivesse no comando. A imaginação humana pode ser infinita; os imaginários talvez não. Em todo caso, as relações de imagens costumam ter como o real como denominar comum. Como diz a antiquíssima anedota filosófica: por que existe algo em vez de nada? Porque sim. A realidade é um vírus.
Referências
DURAND, Gilbert. Les structures anthropoloqiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1992.