Por Daniel Marques
13 de maio de 1942. Nighthawks, de Edward Hopper, é vendido para o Art Institute of Chicago. Talvez seja o mais conhecido quadro do venerado pintor realista norteamericano, famoso por suas representações da solidão urbana moderna. A cena representada em Nighthawks é simples, um pequeno restaurante a noite aparenta ser o refúgio para quatro figuras que ocupam aquele espaço. A primeira vista o calor que emana do espaço parece evocar emoções de conforto. Entretanto, um olhar mais atento revela a profunda desconexão entre os personagens. Estão juntos, mas radicalmente separados. Evitam uns aos outros e o olhar do espectador. Estão cuidadosamente afastados. Nighthawks parece premeditar as medidas de isolamento e quarentena que vivemos em 2020.
12 de setembro de 2019. Estou no Art Institute of Chicago, ansioso pelo momento que estarei em frente a Nighthawks. Quero ser o espectador que os personagens do quadro evitam. O Art Institute of Chicago é um lugar magnífico, tanto em acervo quanto em arquitetura. O posicionamento de Nighthawks naquele espaço é cuidadoso e evidentemente intencional. É possível visualizar a peça a uma boa distância, é possível sentir o magnetismo da sua aura, que atrai múltiplos transeuntes. Estou distante, e me aproximo do pequeno restaurante em busca de um lugar seguro, um refúgio da solidão moderna. É uma armadilha. A multidão aglomerada parece querer oferecer companhia aos personagens solitários do quadro, em vão. Todos querem retirá-los do isolamento, mas sem sucesso. Enquanto eles estão de quarentena há 77 anos, ainda faltam alguns meses para a nossa começar.
20 de março de 2020. Nossa quarentena contemporânea começou. Sete meses depois de minha visita a Nighthawks, a memória da visita persiste. Sinto que agora consigo entender melhor o poder do quadro, principalmente ao saber que Hopper considerava como seu tema central não a solidão, mas o medo dos terrores da noite (LEVIN, 1995). Em março de 2020 estamos aterrorizados por uma pandemia global, estamos em busca de um lugar seguro.
Tenho pela frente uma jornada de 8.000km, meu objetivo é pousar em Salvador em meio ao terror da noite – a pandemia Covid19. Passarei por quatro cidades e quatro aeroportos – Milwaukee, Atlanta, São Paulo e Salvador – num período de 24h, deslocando boa parte da minha vida material em duas malas e uma mochila. Sou um fugitivo, somos todos. O tráfego ao longo desses aeroportos em situação de crise me lembra Latour: “Os Boeings 747 não voam, voam as linhas aéreas” (2001). Ele está certo, é preciso um vasto coletivo de humanos e não-humanos para que eu possa chegar em casa. “Seria diferente se eu estivesse voltando em condições normais?”, penso. Latour, na minha cabeça, responde: “c’est évident!”.
Passageiros nos aeroportos se evitam, estão constantemente buscando espaços vazios, cada um calcula a distância que considera segura. Marcações em fita isolante delimitam espaços em filas. O silêncio é sepulcral, as telas individuais e fones de ouvido são um refúgio, são pontos de contato com o afeto e a normalidade. Máscaras, luvas, estações improvisadas para lavar as mãos são lembretes materiais que estamos em risco. A exaustão e estresse dos funcionários de companhias aéreas é palpável. Os monitores informativos instalados ao redor do aeroporto produzem aglomerações de pessoas, já que são atualizados mais rapidamente que os aplicativos das linhas aéreas. O corpo é frágil, precisa ser higienizado, isolado, confinado, enquanto as mídias digitais facilitam o contato social eliminando o risco de contágio. A presença microscópica do coronavírus afeta a construção da minha viagem.
A pandemia me transformou num fugitivo, e os dispositivos de acesso a informação participam dessa construção. Notícias em tempo real chegam a partir de feeds RSS em meu smartphone e tablet. Tenho medo de não chegar em Salvador, já que a todo momento aplicativos me alertam sobre possíveis cancelamentos de voos e fechamento de aeroportos. Meu smartphone amplifica minhas afetividades, produz em mim tanto medo de não chegar em casa quanto alívio ao receber push notifications sobre voos confirmados. Meus dispositivos digitais se tornaram EPIs, são o meu principal instrumento de negociação com o mundo.
Ao longo destes 8.000km produzo muitos dados. Negocio e gerencio voos com três companhias aéreas diferentes a partir de aplicativos. Notifico familiares sobre minha jornada via redes sociais. Operadoras e telefonias rastreiam meu deslocamento via redes Wifi e 4G. Meu deslocamento, ao produzir dados, alimenta a inteligência algorítmica em prol do combate a pandemia – servirão para produzir heatmaps e estatísticas. Meu corpo, em busca do confinamento e da segurança, alimenta com dados o vírus-rede. Como aponta Lemos (2020), o Covid19 “está longe de ser apenas uma entidade biológica isolada, provocando doenças nos humanos e se difundindo na velocidade das trocas mundiais. Antes de ser um objeto natural, ele é resultado de entrelaçamentos de múltiplas instâncias e agências”.
O combate ao vírus, portanto, excede os fármacos – cloroquina? Outra rede – ou EPIs, se dá também na produção e monitoramento de informações sobre os corpos e deslocamentos – somos todos vulneráveis ao agenciamento do vírus-rede. Minha condição de fugitivo do Covid19 é fruto também de mediações sociotécnicas, estou entrelaçado com o vírus-rede na medida em que contribuo com sua construção: minha viagem produz dados em diversas instâncias que informarão políticas públicas no combate à pandemia.
21 de março de 2020. Ao pousar em Salvador me deparo com outros agenciamentos materiais da Covid19. Meu deslocamento é interrompido por uma barreira sanitária, resultante de disputas políticas entre o Estado da Bahia – representado pela Vigilância Sanitária – e a ANVISA. Eu tinha conhecimento dessa barreira – a informação é meu EPI e me constrói como fugitivo – e aguardava sua presença com um misto de alívio e medo. Por um lado a barreira sanitária é um dispositivo que materializa a ação política do Estado da Bahia na contenção da pandemia. Por outro, é o último obstáculo que se coloca entre os terrores da noite e a segurança da minha casa.
“Posso medir sua temperatura, meu filho?”, pergunta a funcionária da barreira, devidamente aparelhada de EPIs e termômetro digital a laser. “Sim, por favor, agradeço inclusive”, respondo. “Nossa, está baixa, 34,5”, exclama a senhora. Rimos e me despeço. Estou aliviado, não tenho febre. Meu deslocamento se transfigura num dado para a vigilância sanitária assim que minha temperatura é registrada numa tabela.
Consigo chegar em casa. Desinfetantes, álcool em gel e outras precauções marcam o início da minha quarentena. Meu corpo está presente em meu apartamento, confinado, isolado e minha experiência de isolamento é composta por amplo acesso a internet, eletrônicos, games e redes sociais: “o isolamento digital é para quem pode, um luxo para poucos em um país de miseráveis”, como aponta Lemos (2020). Penso novamente em Nighthawks e agora me sinto distante daqueles personagens, cujo isolamento parece profundo, tenebroso e definitivo. Eles são os miseráveis para os quais o isolamento é perturbador. Sua melancolia parece inescapável.
29 de março de 2020. Estou confinado, mas não estou preso – as mídias digitais me auxiliam a escapar do confinamento. O iFood e Uber Eats apaziguam minha fome. O Whatsapp, Instagram e Houseparty amenizam a saudade dos entes queridos. O Slack e Skype me permitem seguir com a rotina de trabalho. Netflix, Amazon Prime Video e HBO GO me mantém atualizado com o entretenimento popular. Discord, Battle.net e Facebook Messenger me mantém conectado com amigos e amigas que deixei em Milwaukee. Começo a entender melhor minha separação em relação a Nighthawks.
A mediação por parte dos aplicativos (iFood, Netflix, Houseparty, Whatsapp, Instagram, Slack etc.) parece ser a escapatória da solidão imposta pela quarentena. Esses dispositivos me constituem como sujeito em um momento histórico em que minha capacidade de ir e vir está reduzida pelos terrores da noite – seres microscópicos, coronavírus. Estou em Nighthawks, mas com acesso a internet e múltiplos dispositivos digitais. Estou preso num espaço físico delimitado, mas também estou num chat do Houseparty com amigos de Salvador-BA, Maceió-AL e Florestópolis-PR. Dividimos o espaço da tela e, organicamente, forma-se uma gramática de quem pode falar em que momento, como posicionar a câmera e que tipo de interação aquela plataforma facilita.
As primeiras semanas da quarentena demonstram como as mídias digitais compõem o vírus-rede. A presença quase onipresente e cada dia mais natural de sites, aplicativos e plataformas parece ser única saída possível para a manutenção da minha vida social. Como manterei contato com as pessoas que amo sem Whatsapp e Instagram? Como manterei minha rotina de trabalho sem Slack e Skype? “Isolamento social e distanciamento social não são a mesma coisa”, dizem. Sinto que os personagens em Nighthawks estão isolados e distantes, mas que as mídias digitais me permitem isolamento sem distanciamento. Mas o que está em jogo quando o distanciamento social passa a ser combatido majoritariamente a partir dessas mediações?
03 de abril de 2020. Revisando meu caderno de anotações do período que passei em Milwaukee-WI, me deparo com discussões dos seminários que Richard Grusin ministrou no outono de 2019. Na sala 939 do Curtin Hall na University of Winsconsin-Milwaukee discutíamos a dupla lógica da remediação (BOLTER; GRUSIN, 1999), um conceito poderoso para entender o que está em jogo com as novas formas de mediação do cotidiano. As mídias digitais parecem buscar transpor o dia-a-dia para suas interfaces, buscando produzir assim efeitos da ordem do imediato (immediacy). Entretanto, esse mesmo processo é amplamente hipermidiático (hypermediacy), no sentido de que prolifera diversas outras mediações (visíveis ou não) para acontecer. Para que eu possa confraternizar com meus amigos ao redor do país através do Houseparty, que mediações precisam se desenrolar? A interface do aplicativo, ao solicitar o acesso a diversas redes sociais, bem como a dados como geolocalização, indica um amplo processo de coleta e processamento de dados – dataficação – dos usuários envolvidos.
07 de abril de 2020. Os dias em confinamento se acumulam, as mediações digitais se expandem. A presença das plataformas digitais se torna cada vez mais constante e, de pouco a pouco, penso nos aplicativos com carinho. São eles que me permitem ver meus amigos, conversar com minha família. Seu papel na construção do meu cotidiano se intensifica. “Poderia ser pior”, penso.
Especulo sobre quais as consequências a longo prazo de uma intensificação da possível plataformização do cotidiano graças a Covid19. Por um lado, fico feliz com a disponibilidade de dispositivos que permitem fugir do isolamento, por outro temo pela aceleração dos chamados capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2015) ou capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2017). Seu objetivo é desapropriar a vida cotidiana em prol da produção ininterrupta de dados – a nova matéria-prima do capitalismo. Além disso, estratégias de vigilância público-privadas começam a se tornar norma de combate a Covid19. Passam a fazer parte do vírus-rede diferentes táticas para rastrear, monitorar e punir sujeitos que desviam das práticas de quarentena. São implementados, ao redor do globo, aplicativos obrigatórios para monitoramento de sintomas (China, Coreia do Sul, Polônia), uso de drones para vigiar áreas de quarentena (França, Espanha, Bélgica e Itália), rastreamento de aglomerações através de celular (Brasil, EUA, Israel, Singapura).
Lembro uma última vez de Nighthawks. Confinados não só no pequeno restaurante, mas também no Art Institute of Chicago, meu caderno de notas e minha geladeira, os personagens parecem perdidos no momento presente enquanto temem o terror que a noite trará no futuro. Embora aparentem estar resignados, parece haver uma forte indeterminação sobre o desfecho desses personagens anônimos. O mesmo pode ser dito sobre o mundo pós-Covid19. Esse pensamento me retorna às manhãs frias em Milwaukee, às aulas de Antropologia registradas em meu caderno de Nighthawks, onde encontro uma citação de Sally Falk Moore que oferece um pequeno acalanto sobre a indeterminação do presente.
“An event is not necessarily best understood as the exemplification of an extant symbolic or social order. Events may equally be evidence of the ongoing dismantling of structures or of attempts to create new ones. Events may show a multiplicity of social contestations and the voicing of competing cultural claims. Events may reveal substantial areas of normative indeterminacy” (MOORE, 1987)”
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Referências
BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Boston: MIT Press, 1999.
MOORE, S. F. Explaining the Present: Theoretical Dilemmas in Processual Ethnography. American Ethnologist, v. 14, n. 4, p. 727–736, 1987.
LATOUR, B. A Esperança de Pandora. SciELO – Editora UNESP, 2001.
LEMOS, A. A construção do novo coronavírus. Salvador: Correio*, 14 de março de 2020.
LEMOS, A. Coronavírus: isolamento digital é um luxo para poucos em um país de miseráveis. Salvador: Correio*, 23 de março de 2020.
LEVIN, G. Edward Hopper: A Catalog Raisonné. Whitney Museum of American Art, New York, 1995.
SRNICEK, N. Platform capitalism. John Wiley & Sons, 2017.
STRAND, M. Hopper. Knopf Doubleday Publishing Group, 2011.
ZUBOFF, S. Big other: Surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology, v. 30, n. 1, p. 75–89, 2015.