Por Amanda Nogueira
Desde que o Brasil identificou os primeiros casos de infecção pelo coronavírus (Covid-19), estados e municípios, em maior e menor graus, têm incentivado o isolamento social, o que tem provocado uma série de mudanças na forma como nos relacionamos. Pagar uma despesa ou movimentar uma conta, trabalhar, estudar, cozinhar, conversar, entre outras ações, agora incidem no aumento da utilização de dispositivos conectados pela internet. Além disso, o isolamento social tem demandado atenção a problemas sociais localizados especialmente no ambiente doméstico, como é o caso do aumento no número de casos de violência contra mulheres neste período. E a necessidade do combate a esta situação tem passado também por soluções criadas em ambiente digital.
Entre os dias 14 e 24 de março, no Brasil, período inicial de restrições devido ao Covid-19, o número de denúncias diárias por violações de Direitos Humanos partiu de cinco para o pico de 406 e, somente no Rio de Janeiro, o Plantão Judiciário estadual registrou o aumento de 50% de denúncias de violência doméstica, em comparação com os últimos dias anteriores às medidas de isolamento social e quarentena, sendo a maioria advindas de mulheres.
Alguns aplicativos disponíveis na Google Play
As violências no Brasil já incidem de forma material na realidade, em maior parte, de mulheres negras com idade entre 15 e 29 anos. Violências simbólicas, financeiras e físicas, estas últimas envolvendo espancamento, armas de fogo, canivete, marreta, tesoura, estrangulamento, martelo, foice, barra de ferro, garfo, chave de fenda, facas, entre outros objetos, são constantemente registradas. Somente em 2019, 1.310 mulheres foram mortas por violência doméstica no país. Em um plano ideal, o lar é um espaço de acolhimento. No entanto, também é sinônimo de opressão, medo e, neste momento em que a quarentena se torna um aspecto real do cotidiano da maior parte dos brasileiros, a proteção que o confinamento proporciona dá lugar a outros riscos que afetam a integridade física e psíquica de mulheres.
Levando essa realidade em consideração, o Governo Federal antecipou o lançamento do aplicativo “Direitos Humanos Brasil”, previsto para o segundo semestre – inicialmente disponível para o sistema Android –, permitindo que vítimas de violência doméstica possam registrar suas denúncias. O aplicativo torna-se agente de proteção e salvaguarda assim como o Disque 100 e o Disque 180, e, com a diminuição do número de atendentes destes serviços, devido ao Covid-19, pode dar mais celeridade à resolução das situações ao transmitir informações diretamente para os órgãos competentes.
Aplicativo “Direitos Humanos Brasil”
No país, já existem soluções de inteligência artificial, tanto a partir de aplicativos como a partir de robôs conversacionais, que ofertam serviços e informações sobre como denunciar e identificar situações de abuso e violência. Podemos citar como exemplos o aplicativo PenhaS, desenvolvido pela Revista AzMina, e o robô MAIA (Minha Amiga Inteligência Artificial), desenvolvido pela Microsoft e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo com vários parceiros, inclusive a Revista AzMina.
No caso do PenhaS, qualquer mulher pode acessar o aplicativo, contanto que se cadastre na plataforma. Dados como nome completo, data de nascimento, telefone para contato, e-mail e número do Cadastro de Pessoa Física (CPF), são requeridos. Segundo o aplicativo, estes dados são solicitados para que ele identifique o gênero da pessoa. O aplicativo se coloca como ambiente seguro para que as mulheres cadastradas possam saber como proceder em casos de abusos, assédios e demais violências, e auxiliar quem esteja passando por situações como essas.
Aplicativo PenhaS
Logo na tela inicial do aplicativo, as mulheres cadastradas têm acesso a um feed de notícias, com dados oriundos de agências de comunicação parceiras. A mulher cadastrada também tem acesso a diferentes ferramentas com nomenclaturas bem sugestivas e que denotam suas funções. A partir de uma série de perguntas com respostas fechadas, o aplicativo, por meio da ferramenta “empoderaQuiz”, visa orientar e empoderar essas mulheres. Com a ferramenta “defendePesquisa”, o aplicativo expõe uma rede de usuárias e qualquer uma delas pode entrar em contato com as cadastradas, desde que geograficamente próximas. Abrindo esta rede para pesquisa, ele ajuda estas mulheres a se defenderem por meio do diálogo com outras que passaram pela mesma experiência ou estão lá para receber e dar conselhos.
O aplicativo também oferta uma ferramenta para a mulher pedir ajuda e sugestões de forma escrita ou por meio de áudio, facilitando um canal para a exposição de violências, o “defendePedidos”. E quando apresenta um botão de cor roxa, com a figura de um “megafone”, deixa bastante evidente que ali essas mulheres vítimas de violência poderão contar com um auxílio urgente a sua demanda. É a ferramenta “gritaPenha”.
A configuração do aplicativo é toda voltada para o apoio a mulheres. Cada ferramenta tanto oferece a oportunidade para que elas falem como criam dutos e redes que provavelmente elas não teriam como acessar de outra forma. Nele, quando acessamos sua parte interna, vemos descrições de histórias de vida e imagens de diferentes mulheres. Elas estão disponíveis para conversas em chat. Percebe-se a construção de uma rede e que o aplicativo trabalha – por meio dos dados requeridos, sua interface e a disposição dos conteúdos – no sentido de garantir que esta mulher usuária tenha segurança para abordar suas narrativas e possa, assim, pedir ajuda se for preciso. A ajuda pode vir tanto por meio das guardiãs – previamente selecionadas pela manuseadora da conta – como pelo contato direto com a polícia (há uma ferramenta disponível para isso).
Já a robô MAIA está disponível em um site que traz esclarecimentos sobre o que seria um “namoro legal” e, para acessá-la, basta clicar no botão “Maia” disponível no lado direito da tela. Diferente do aplicativo PenhaS, criado para dar vazão a denúncias, a robô MAIA está disponível para dar informações sobre “como e quando agir para impor limites” em relacionamentos, interagindo como uma amiga da usuária. Não há necessidade de cadastro para dialogar com a MAIA e, também, não é necessário que a mulher esteja passando por alguma violência para conversar com a robô. Ela é uma ferramenta de prevenção.
Site “Namoro legal” e a interação com a MAIA
A iniciativa é voltada para adolescentes e jovens mulheres, com idade entre 15 e 24 anos. Quando acionada, MAIA logo se apresenta: “Olá! Eu sou a Maia! Sou uma bot criada para ajudar pessoas a terem um relacionamento legal!”. De antemão já expõe que é um robô e, com um diálogo amigável, ela pergunta se a usuária está bem, se está namorando ou já namorou. Essas são as perguntas de partida para identificar qual será o teor da conversa. Caso a jovem tenha namorado, a “Maia” apresentará exemplos de violências para que a usuária possa identificar caso se envolva com um parceiro abusador.
Dentre os exemplos expostos pela “Maia” estão: 1. “Sabe… eu conheço histórias de várias meninas que namoraram muito tempo até descobrirem que estavam com uma pessoa dominadora. Não é fácil perceber, sabia? Uma delas demorou DOIS ANOS.” e 2. “Nossa! Tem gente que dá showzinho de ciúmes, faz a menina se separar dos melhores amigos e amigas. Ainda, reclama das roupas, mexe no celular, faz joguinho mental. Aquelas coisas… ‘se vc não tem nada para esconder, me mostra o seu celular’. Dá pra acreditar, amiga?!”. Caso a jovem continue o diálogo, “Maia” continuará contando outras histórias, finalizando com perguntas que demandem da usuária respostas já programadas como “por que?”, “o que?”, “como?” para que a orientação continue. Caso a usuária decida parar de conversar, a bot diz “Se mudar de ideia e quiser conversar, tô por aqui.”.
As duas iniciativas são ambientes de diálogo criados para que suas usuárias se expressem. Tais plataformas estão presentes em meio digital e incidem diretamente no enfrentamento a violências, mas não só isso. Estas iniciativas também surgem como parte intrínseca ao fortalecimento da relação entre mulheres. Essa busca pelo combate à violência é também uma base para uma política dos comuns (FEDERICI, 2019) no sentido de que a unidade adquirida provoca produtos coletivos. Com relação ao PenhaS, a plataforma existe apenas para aquelas que se reconhecem como mulheres e isso é uma normativa que configura o gênero como fator determinante para a experiência de usuário. Não há apenas uma relação direta entre aplicativo e mulheres. O aplicativo também se fortalece como polo de contatos, como rede de produção de sentidos, como entrelaçamento de crises e soluções. E é esse aplicativo que, além de criar soluções, também impulsiona a visualização de fissuras.
A robô conversacional MAIA foi desenvolvida como uma amiga também para garantir que a experiência de usuário se dê entre mulheres. Diferente do PenhaS, cujo nome remete a uma pluralidade, a MAIA cria uma personagem como recurso de humanização. É uma personalidade mulher/máquina que expõe anseios, medos, angústias, tenta auxiliar outras mulheres, agindo como um potencial modelo a ser seguido por entre amigas que também reconheçam situações de violência em seus grupos próximos. E, agora, em tempos de pandemia, a permanência no isolamento fará com que essas mulheres reconheçam essas situações também de forma digital.
Em momento de restrição de liberdades, o ambiente doméstico se torna o único lugar de convivência e, por isso, conflitos podem ficar ainda mais expostos. Ao longo deste período de confinamento, veremos muitas mudanças e a criação de novas possibilidades de convívio. E com relação ao combate à violência contra mulheres em ambientes domésticos, iniciativas digitais podem figurar como possibilidades para a movimentação de redes de combate a opressões desestabilizando relações de poder e provocando novas formatações familiares. E são as mulheres que virarão potenciais protagonistas desta dimensão.
—
Referência: FEDERICI, S. O feminismo e a política dos comuns. In: HOLANDA, H. B. Pensamento feminista:
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.