O Lab 404 deu início a uma nova jornada de leitura, desta vez sobre o livro “Digital Humanities”, uma obra coletiva de Anne Burdick, Johanna Drucker, Peter Lunenfeld, Todd Presner e Jeffrey Schnapp, editada pela MIT Press em 2012.
Já no prefácio, afirma-se que a nossa época é um desses momentos de virada cultural na História, tais como foi o da criação da prensa tipográfica por Gutenberg, a descoberta do Mundo Novo e a Revolução Industrial. A inundação de todos os espaços sociais pelas novas tecnologias traz consigo um desafio único para as Humanidades, enquanto saberes sobre as práticas representacionais e interpretativas da condição humana. Recusando o diagnóstico de ‘crise das Humanidades’ os autores reforçam o chamado para que elas ocupem um renovado e central papel na vida social.
O ponto de partida desse novo projeto humanístico seria o que os autores chamam de um modelo experimental, situando em seu centro o conceito amplo de design – seja da informação, gráfico, tipográfico, formal ou retórico. Nele, constata-se ainda a convergência entre fazeres físicos e digitais, ações individuais e colaborativas. As Humanidades Digitais são um projeto múltiplo e poroso, aberto para formas experimentais de prática acadêmica e suas possíveis interfaces de parceria com plataformas e seus diferentes usos sociais.
O primeiro capítulo explora as formas emergentes de pesquisa transmidiáticas e a crescente importância do que se chama de ‘testes de protótipo’, experimentação e desenvolvimento de ferramentas e plataformas para as práticas acadêmicas contemporâneas nas Humanidades.
O capítulo estabelece de saída que as Humanidades Digitais nascem da convergência entre a tradição dos estudos humanísticos com os métodos computacionais. Com a migração de conteúdos para os ambientes de rede, surgem novas questões sobre sua produção, acesso, validade e gestão. A atitude digital é colaborativa e generativa, o que transforma certos padrões e questões das humanidades tradicionais. Isso expande o raio de ação das humanidades digitais, tanto dentro da academia quanto fora dela. Em sua fusão com as culturas digitais, as humanidades podem rediscutir seu legado histórico sobre a natureza do conhecimento humano e a capacidade humana de fundamentar seu saber sobre o mundo.
O primeiro capítulo daí faz um longo sobrevoo histórico sobre como surgiu a tradição humanística no ocidente e seu estabelecimento cultural. Antes de Gutenberg, havia as universidades medievais, as cortes e o resgate intelectual do legado greco-romano. Com o Renascimento e as novas formas de produção e circulação de conteúdos, eclode um mundo secular de cultura humanística, que pouco a pouco vai se firmando dentro das universidades e academias modernas. Com a construção dos modernos sistemas de ensino, surge a separação entre as áreas dos estudos da natureza física e os da sociedade e cultura.
É nesse processo que vem, segundo os autores, a estreita ligação entre as humanidades e o texto enquanto configuração básica de transmissão e dispositivo de saber. Foram os textos que constituíram a base do cânone humanístico, responsável pelos seus modos de existência e sobrevida. Foi assim que as humanidades foram se separando em áreas de especialidade e preparo para os diferentes setores de atuação. Essa compartimentalização é um dos aspectos que estão sendo revistos pelas novas expressões digitais das humanidades, como também a diferença entre modos quantitativos/qualitativos, pesquisas puras/aplicadas e a separação entre teoria/prática.
O capitulo segue então na exposição dos diferentes estágios e gerações das humanidades digitais. Nos anos de 1970-80, os primeiros projetos começavam por explorar as diferentes possibilidades de armazenamento e acessibilidade que os meios digitais davam para os acervos tradicionais do legado humanístico. Isso possibilitava a sua difusão para públicos mais amplos. Num momento subsequente, começou o que se chama de um diálogo mais profundo e ambicioso entre as duas esferas, as das práticas acadêmicas humanísticas e as culturas computacionais. Era o início das culturas digitais enquanto campo autônomo, que aí começavam a encenar diferentes formas de ação criativa para as diferentes áreas artísticas e estéticas. Isso se intensifica com o espalhamento da internet, as interfaces gráficas, a imersão em ambientes digitais e as culturas dos games. Ainda mais, quando essas expressões começam a fazer parte das questões investigadas pelas áreas das ciências humanas.
Modos de Argumentação Transmídia
Os novos formatos e as possibilidades digitais introduzem nas humanidades novos recursos, novas funcionalidades e novas aplicações. Muito para além do texto, há novos leques de visualização, análises e sobretudo argumentação através de inúmeras plataformas e formatos de mídia. Os estudantes precisam ser ensinados a “ler” e a “escrever” nessas novas linguagens, para além do texto. Isso inclui conhecimentos em design gráfico, narrativa visual, mídias temporais e o desenvolvimento de interfaces. Isso é ver as humanidades como um projeto ‘generativo’, onde professores e alunos se juntam para fazer coisas, ao mesmo tempo que as estudam e pesquisam.
O resultado de criação não são apenas textos, mas também imagens, interações, conteúdos transmidiáticos, software e plataformas. A prática e as habilidades argumentativas precisam acompanhar e se transformar em função dessas novas funcionalidades tecnológicas. Da mesma maneira, seriam aí reintroduzidos elementos ancestrais que já tinham sido expulsos dos estudos humanísticos, tais como a oralidade, o gestual e a performance incorporada em argumentos meta-texto. As novas humanidades dialogam com todo o universo de expressões contemporâneas da cultura e sociedade.
Em todos esses aspectos, o design estará presente como categoria operativa fundamental, nas funcionalidades e metodologias básicas das humanidades tradicionais. Os autores apontam especialmente quatro: curadoria, análise, edição e modelagem. Em cima deles, agirão os elementos das culturas computacionais, tais como o do processamento, a digitalização, a classificação, a descrição, os meta-dados, a organização e a navegação. Os resultados de todos esses processos serão então midiatizados em redes e infraestruturas comunicacionais. Esses são os elementos constitutivos e base para a nova cultura humanística digitalizada, que o livro irá desenvolver em seus capítulos subsequentes.