Este ensaio foi publicado originalmente na Fata Morgana Web em inglês e italiano.
Richard Grusin
Diretor do Center for 21st Century Studies, University of Wisconsin-Milwaukee
Escrevo este pequeno ensaio durante a Páscoa judaica de 2020, pouco depois de Bernie Sanders renunciar à sua campanha como candidato democrata à presidência nas eleições estadunidenses. Candidato judeu à Casa Branca mais bem-sucedido da história dos Estados Unidos, Sanders optou por interromper sua campanha, que buscava guiar o povo americano à terra prometida do Socialismo Democrático. A renúncia de Sanders também aniquilou as esperanças e os sonhos do seu movimento em prol de uma revolução que transformaria a sociedade norte-americana por meio de sua eleição como presidente em 2020.
Para muitos ativistas que participaram do movimento popular em torno da campanha presidencial de Sanders, a pandemia da COVID-19 oferece novos lampejos de esperança para a destruição do capitalismo e sua substituição por um sistema socioeconômico mais justo e igualitário, tanto para humanos como para não humanos. Para estes pensadores revolucionários, a atual pandemia expõe a falta de sustentabilidade e as desigualdades do sistema em vigor. Ao invés de lutarmos pelo regresso ao estado normal das coisas, anterior à pandemia, por que não aproveitar essa destruição para impulsionar uma nova e mais humana economia política e estado de bem-estar social? Por que não, parafraseando Steve Earle, iniciar agora a revolução?
Embora eu seja simpático a esse desejo, os escolhidos permanecem – pelo menos por enquanto – escravos das forças do capitalismo. A cidade resplandecente no topo da colina enfrenta suas próprias pragas, trazidas por sabe-se lá quais deuses: o faraó Trump, os republicanos, os supremacistas brancos, cristãos evangélicos, a devastação ambiental, o racismo estrutural, a injustiça econômica, o fim do Estado de Direito, o fechamento cruel de fronteiras e, agora, a COVID-19. Em resposta à última dessas pragas, a matança desigual e imprevisível dos primeiros infectados, não fomos convocados a pintar de sangue nossos linteis, mas a marcar nossos rostos com máscaras.
Tenho pensado sobre que tipo de trabalho essas máscaras performam. Elas atuam, obviamente, como expressões de uma coletividade socialmente distante, não muito diferentes dos lenteis ensanguentados dos judeus egípcios, que pediam a Deus para manter distância de seus lares, poupando seus primogênitos. Mais especificamente, tenho tentado entender nosso mascaramento pandêmico em relação à questão da resistência, rebelião, ou revolução popular, imaginando se nossas máscaras poderiam ser entendidas (ou serem produzidas para funcionar) como símbolos de uma resistência coletiva não apenas ao vírus, mas às forças devastadoras do capitalismo, que tanto possibilitaram quanto foram potencializadas pela atual pandemia do coronavírus.
Certamente, a história recente tem nos apresentado muitos exemplos nos quais objetos cotidianos ou coisas banais têm se associado a movimentos políticos de resistência, operando como mediações radicais que catalisam ou agregam uma agência revolucionária. Na “revolução laranja” ucraniana de 2004-05, as fitas laranja metamorfosearam-se numa coletividade laranja revolucionária.
Na revolta dos guarda-chuvas de Hong Kong (2014), guarda-chuvas amarelos e de outras cores ajudaram a intensificar e a acentuar as multidões de manifestantes, bem como a produzir um interessante subgênero de arte revolucionária.
Iniciado em 2018, o movimento francês dos “Gilets Jaunes” fez uso de coletes amarelos fluorescentes para unificar suas causas em meio a uma série de exigências populares por justiça econômica, incluindo a “redução da carga tributária sobre combustíveis, a reintrodução do imposto sobre grandes fortunas, aumento do salário mínimo e a implementação do Referendo de Iniciativa Cidadã (RIC), entre outros”.
E, mais recentemente, o movimento italiano das Sardinhas adotou o símbolo do pequeno cardume de peixe para congregar um movimento popular contra a política eurocética anti-imigração de Matteo Salvini. Tais mediações não humanas têm sido e continuam sendo cruciais no surgimento do que Jonathan Flatley entende como “afetação revolucionária anti-hegemônica”
Embora seja possível pensar nesses objetos revolucionários como símbolos ou metáforas, representando ou correspondendo a uma resistência coletiva que existe a priori e de forma independente desses guarda-chuvas ou coletes, gostaria de sugerir que eles operam mais como mediações metonímicas desses movimentos revolucionários, catalisando e mantendo unidas sintonias afetivas revolucionárias. Eles não buscam produzir significado sobre a natureza ou as exigências desses diferentes movimentos de forma literal; ou seja, não operam primariamente de acordo com um entendimento lógico ou metafórico. Ao contrário, esses objetos revolucionários são, em algum sentido, ontogenéticos, funcionando como mediações radicais, uma forma de “terceiridade” peirceana a qual Pierce chama de “tendência a adquirir hábitos”. No caso desses movimentos revolucionários, reunir com objetos de cor laranja, guarda-chuvas ou coletes faz parte das “afetações anti-hegemônicas””, ou hábitos de coletividade e resistência necessários a qualquer forma de movimento revolucionário.
Ou, a partir do Rancière’s Sentiments (2018), de Davide Panagia, estes objetos performam o ato de mediação radical que Rancière caracteriza como “le partage du sensible”. Esses objetos mediadores revolucionários ajudam a gerar uma “conjunção de forças disposicionais que relacionam as coisas, umas com as outras”, como os guarda-chuvas ou coletes, as causas ou propósitos dos movimentos revolucionários, as pessoas amontoadas nas ruas, ou suas múltiplas remediações na mídia impressa, televisiva e digital. Essas coisas ou objetos não são epifenômenos secundários de coletivos preexistentes, mas mediações radicais que ajudam a compor coletividades como qualitativamente diferentes de uma somatória de indivíduos atomizados. Mediações revolucionárias dessa natureza ajudam a criar e a sustentar hábitos de agregação coletiva que produzem casos individuais de resistência. A multiplicação de objetos também evidencia a multiplicação da força em um coletivo revolucionário. Na medida em que representam algo, eles funcionam como um índice da intensidade, multiplicidade ou poder, e não como a representação de um conceito ou demanda revolucionária específica.
Podemos dizer o mesmo sobre as máscaras? Elas funcionam da mesma maneira? Essa, eu ousaria dizer, é uma pergunta mais complicada, já que as máscaras servem a uma dupla função. Por um lado, usar uma máscara como parte de um coletivo revolucionário – como as máscaras de Guy Fawkes no filme V de Vingança, ou as máscaras de coringa em Joker – permite ocultar a identidade individual do usuário.
Como os guarda-chuvas, coletes ou sardinhas, entretanto, essas máscaras geram simultaneamente uma coletividade revolucionária, multiplicando através da repetição a intensidade da coletividade revolucionária ou resistente. Contudo, nesses dois exemplos cinematográficos, as máscaras também têm valor representativo ou simbólico, fazendo referência a figuras históricas reais ou fictícias. Mas as máscaras também funcionam para ocultar sem referência histórica, como a colocação de máscaras em Hong Kong durante os movimentos de 4 a 18 de outubro de 2019, que serviu para driblar as tecnologias de reconhecimento facial utilizadas pela polícia no intuito de identificar e processar líderes dos protestos.
Embora todas essas máscaras tenham papéis históricos ou estratégicos, elas também servem para materializar coletividades revolucionárias e sintonias afetivas através da redistribuição do sensível. O que elas demonstram, eu diria, é como as máscaras simbólicas podem funcionar tanto metonimicamente quanto metaforicamente. Esses objetos não são selecionados arbitrariamente – não são desprovidos de significado. Coletes de emergência, guarda-chuvas, sardinhas e máscaras: sua relação com os movimentos que alimentam é de contiguidade e não de analogia, metonímia e não metáfora. Ou, mais precisamente, esses objetos revolucionários são ativados através da remediação da metáfora como metonímia.
Isso me leva ao curioso caso das máscaras da COVID. Por um lado, o ato de vestir essas máscaras pode ser entendido como facilitador de uma espécie de coletividade marcada pelo distanciamento social, à medida que vamos para o mercado ou percorremos as ruas, calçadas, ônibus ou trens em nossas cidades. Por outro lado, o objetivo dessas máscaras é nos separar uns dos outros, nos distanciar para que se evite aglomerações. Mas as máscaras também podem criar formas de solidariedade e coletividade. Pessoas começaram a compartilhar através da internet instruções e exemplos de como fazer suas próprias máscaras, bem como fotos de si mesmos e de seus familiares mascarados e prontos para se aventurarem no mundo.
Mascarar-se em função da COVID-19 é um ato que pode ser visto como um gesto de cuidado coletivo de uns para com os outros, objetivando mais a saúde coletiva do que a de um indivíduo em particular. Dito de outra forma, as máscaras da COVID-19 promovem redistribuições do sensível ao demarcar divisões entre indivíduos e no meio destes.
Certamente, cuidar dos outros e do coletivo é uma boa razão para as pessoas usarem máscaras. Contudo, a pergunta que tenho me feito é se essas máscaras de cuidado coletivo podem ser transformadas em máscaras de protesto, vingança, rebelião, resistência ou revolução. Embora a história ainda esteja se desenrolando, tenho minhas dúvidas. Essas máscaras, por exemplo, trabalham para transformar cidadãos em pacientes. A razão mais proeminente para o uso da máscara é evitar a transmissão da doença por pessoas assintomáticas. A suposição inicial é que todos nós devemos nos comportar como se estivéssemos infectados pelo vírus, ou como se fôssemos pacientes em potencial. Isto parece particularmente verdadeiro para aqueles que usam máscaras hospitalares, embora não importe muito o tipo da máscara para que essa suposição se sustente. Usar máscaras importa, coletivamente e individualmente. E, em tempos como estes, precisamos de todo o cuidado possível.
Entretanto, “usar máscaras não nos protege da nossa história”. Usar máscaras para cuidar do outro perpetua uma lógica de resiliência, preocupada principalmente em sobreviver (individual e coletivamente) às condições sociais, políticas e econômicas da pandemia como estão dadas. E talvez, por enquanto, isso seja tudo que essas máscaras podem fazer. Mas não podemos esperar o fim da pandemia COVID-19 para trabalhar em prol de mudanças estruturais. Mesmo agora, enquanto trabalhamos para nos proteger e proteger nossos vizinhos de futuras infecções, precisamos conclamar as pessoas a se mascarar não apenas em prol do cuidado, mas pela luta por mudanças. O cuidado é importante, exceto se pressupor a aceitação de um status quo injusto e desigual.
Muitos de nós sentimos uma fúria intensa diante das injustiças expostas e amplificadas pela pandemia. Já passou o tempo de transformarmos essa raiva num fenômeno coletivo e descobrirmos como promover alguma mudança significativa – começando pela destruição de coisas que são valiosas para aqueles que perpetuam e se beneficiam da injustiça estrutural. E, como sugerem os exemplos da Ucrânia, Hong Kong, França e Itália, a emergência de um coletivo revolucionário pode se viabilizar a partir de mediações radicais baseadas na “tendência a adquirir hábitos”.
Talvez o melhor exemplo recente deste tipo de mediação revolucionária esteja nas feministas mascaradas do Chile, que têm sido uma força importante nos protestos chilenos contra desigualdades sociais que começaram em outubro de 2019. Em março de 2020, um grande número de feministas mascaradas protestaram publicamente por toda América Latina durante as marchas do Dia da Mulher. Em 9 de março, dia seguinte às gigantescas marchas do Dia da Mulher, as feministas mascaradas do Chile realizaram um ato ainda mais poderoso, estimulando uma greve geral em protesto contra as injustiças existentes por todo o país.
Enquanto nosso uso coletivo de máscaras em prol do cuidado torna-se habitual, pode-se estar no momento perfeito, tanto nos EUA quanto ao redor do mundo, para começar a trabalhar não só pelo cuidado uns dos outros, mas para promover a destruição e expropriação daqueles que dificultam tais cuidados, talvez por meio de saques ou tumultos realizados tanto por flash mobs quanto por coletivos menores, em benefício dos pobres, imigrantes, do meio ambiente ou de povos de todas as cores e raças, gêneros e etnias. Nossas máscaras da COVID ainda não nos levaram até lá, mas contêm, sugiro, a potencialidade de mobilizar coletividades de resistência ou, talvez, até de revolução, por meio da redistribuição do capital e do poder político.
Tradução: Daniel Marques, Supervisão: André Lemos