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Métodos digitais para a visualização de dados na cartografia de controvérsias: uma gramática possível?

Incialmente proposta por Latour como um exercício didático para a aplicação da TAR, a cartografia de controvérsias se expandiu, envolvendo uma multiplicidade de técnicas, processos e contribuições analíticas no campo das pesquisas em ciência e tecnologia. Interessada em observar e descrever os debates públicos, especialmente aqueles onde há discordância entre os atores envolvidos, a cartografia de controvérsias se apresenta enquanto uma abordagem favorável à coexistência de pontos de vista e perspectivas múltiplas que emergem das diferentes associações estabelecidas entre as entidades e redes que mediam o fenômeno.

Contrariamente à aparente simplicidade que o ato de “observar e descrever as controvérsias” possa evocar, o registro e as análises dos debates sociais envolvendo discordâncias, posicionamentos e associações diferenciadas entre os actantes representa um número significativo de dados e rastros a ser levado em conta. Isso implica uma complexificação tanto no mapeamento das controvérsias quanto nos processos de organização, visualização e exploração dos dados que permitirão a posterior descrição do fenômeno estudado (VENTURINI, 2012, 2010).

Como expõe Venturini (2012), se os mapas não são, nem devem ser, os “territórios” observados, os métodos de registro e visualização das controvérsias também não devem reproduzir a complexidade dos debates e das diversas associações entre os atores. Diferentemente, necessitam, por princípio, transformar todo esse emaranhado de dados em um enunciado legível. A legibilidade dos mapas, entretanto, não se refere apenas ao grau de objetividade com que a informação será exposta. Venturini (2010, 2012) alerta para a importância de tornar compreensível também as distintas forças e modos de associação dos actantes – proporcionalidade –, vez que garantir o registro de uma multiplicidade de pontos de vista também implica demonstrar a representatividade dos diferentes status que cada rede de atores possui no debate.

Ademais, segundo o mesmo autor, a ilustração da controvérsia precisa ser adaptativa – cobrir o maior número de expressões nativas dos atores –, redundante – oferecer diferentes aspectos do mesmo fenômeno –, e flexível o suficiente para permitir o movimento entre as representações e os elementos que as compõem. Diante da complexidade de tal cenário e da crescente mediação computacional da comunicação, não apenas as novas tecnologias pervasivas passaram a compor o que se entende por espaço social, como também elas ofereceram ferramentas eficazes para a observação, apresentação e exploração das controvérsias.

Nesse contexto, os métodos digitais para visualização de dados, cada qual com suas especificidades e vantagens, passam a figurar enquanto instrumentos versáteis na coleta e exposição das informações. De maneira geral, eles possuem propriedades interativas de zoom e reversibilidade, permitindo aos investigadores explorarem o fenômeno através da navegação por entre as diferentes camadas e níveis de agregação. Aspecto esse que vem a preencher uma lacuna existente nas abordagens que pressupunham a observação polarizada do debate nos níveis macro e micro, tornando os métodos digitais de visualização de dados um ferramental conveniente ao campo das ciências sociais.

Contudo, grande parte das interfaces gráficas utilizadas para a exposição visual das redes e exploração dos agregados fazem uso de uma gramática mista, nem sempre acessível, respaldada frequentemente em um repertório gráfico comum à infografia jornalística[1], aos diagramas numéricos, estatísticos e descritivos (BOUNFORD, 2000). Embora sejam referências previsíveis, a fusão dessas linguagens e os critérios por detrás das escolhas dos diagramas nem sempre contribuem para a apresentação da informação de forma objetiva e autoexplicativa (fig. 01). Em algumas ocasiões, a visualização dos dados faz uso de uma gramática tão complexa quanto as controvérsias que se propõem a representar.

 

exemplo01

A título de exemplo, a figura 01 apresenta duas opções de diagramas utilizados por estudantes do Density Design – laboratório de pesquisa em visualização de dados do departamento de design da Politécnica de Milão – para a visualização de controvérsias relacionadas à temática das transformações do clima. Os dois modelos tinham por objetivo ilustrar os principais locais dos atores envolvidos nos debates. A imagem superior mostra a opção de uma equipe em usar um mapa descritivo para localizar as organizações citadas na discussão. A segunda equipe (imagem inferior), entretanto, optou por um diagrama que alude aos modelos de gráficos de dispersão (BOUNFORD, 2000), frequentemente empregados para ilustrar a inter-relação entre pontos em representações numéricas. Mesmo com o uso das legendas, as circunferências na segunda imagem, portanto, mostram-se menos autoexplicativas que as utilizadas no mapa superior.

Para fins de problematização e reflexão acerca de tais questões, tomemos um segundo caso, ainda mais específico – uma ferramenta de visualização de dados desenvolvida pelo mesmo laboratório de pesquisa comentado. Diferentemente das demais iniciativas que fazem uso dos diagramas e ferramentas destinadas a SEO, análise de redes sociais e softwares de planilhas, o projeto FINEO[2] foi elaborado com a finalidade de fornecer um modelo graficamente atraente e autoexplicativo para a visualização de dados em fluxo ou ilustrar a relação entre dimensões dados pertencentes à categorias distintas.

 

EXEMPLO FINEO e DIAGRAMA de SANKEY

 

 

Baseado nos gráficos de Sankey (Fig.2 A) – diagramas de setas que representam o fluxo de dados de um sistema – o FINEO (Fig. 2 C) adotou os padrões das setas para representar as relações entre categorias multidimensionais de dados. Segundo seus criadores, uma vez que a proposta de Sankey é representada por uma estrutura em rede, ele forneceria um modelo mais didático e intuitivo para a representação da relação entre conjuntos de dados. Ademais, as setas não são atomizadas. Como elas representam fluxo, o modelo gráfico favoreceria a relação entre dados e dimensões diferentes, bem como a visualização do deslocamento e da distribuição de dados dentro da totalidade do fenômeno.

As informações podem ser importadas de tabelas ou alimentadas diretamente na plataforma online do sistema. Ao usuário é permitido escolher as dimensões que deseja comparar, trocar a cor das setas–fluxo e a ordem de exibição das categorias. As imagens geradas também estão disponíveis para exportação em formatos vetoriais editáveis, png ou arquivo de planilha. Nas palavras dos responsáveis pelo projeto, o FINEO se mostra útil como uma ferramenta analítica ou como instrumento para apresentações e experimentações gráficas.

Ao ser aplicada, entretanto, a ferramenta exibe algumas fragilidades no cumprimento do seu objetivo principal – a exibição didática das grandezas e categorias a serem comparadas. Notadamente inclinada ao apelo visual, a interface do FINEO oferece uma ênfase grande ao ajuste e edição de cores dos fluxos – maior e mais destacada área do diagrama. As informações mais preciosas, entretanto, ficam delegadas às margens, representadas através de pequenas barras verticais que facilmente perdem destaque no emaranhado de linhas coloridas. Como ferramenta de análise, portanto, o diagrama peca justamente na sua principal função, hierarquia e design da informação.

 

exemplo 02

 

Na imagem acima, foram selecionados mais dois diagramas de visualização de controvérsias adotados pelas mesmas equipes de estudantes do laboratório Density Design analisadas anteriormente. No primeiro (imagem superior), a equipe fez uso de um diagrama customizado para ilustrar a relação existente entre palavras chaves e nações citadas nos debates dentro do Reino Unido – representado pela sigla em caixa alta. As linhas permitem visualizar a associação entre as duas categorias de dados presentes, sem perder a referência no fluxo de informações.

Na segunda imagem (inferior), os estudantes optaram pela utilização do FINEO para expor a relação entre os casos envolvidos na controvérsia e outros que são citados nos sites que compõem o debate. Diferentemente do diagrama das palavras (imagem superior), o destaque maior do FINEO é para o emaranhado de linhas, quando a ênfase deveria estar nas laterais identificadas pelas letras A e B. Se os mapas de fluxo tem por principio não priorizar as rotas, mas a intensidade e o direcionamento dos dados (BOUNFORD, 2000), o FINEO deveria, por princípio, tornar legível os pontos de entrada e saída que são justamente as categorias em debate. Mesmo os arquivos estando disponíveis para edição em programas vetoriais específicos, a interface online privilegia ajustes e alterações nas rotas centrais, deixando escapar uma certa inclinação para a forma em detrimento da função – debate antigo, embora um tanto reminiscente no campo do design.

Por fim, ainda que as análises aqui realizadas não permitam uma generalização, há de se refletir sobre a problemática da gramática da visualidade adotada para a representação gráfica de controvérsias nos métodos digitais. Mesmo levando-se em consideração a redundância recomendada por Venturini (2012), a utilização despretensiosa de métodos e diagramas ou a ênfase demasiada na poiesis dos modelos de visualização acabam por comprometer o princípio básico da cartografia, a representação.

Neste cenário, torna-se premente levar em conta o aproveitamento de modelos mentais de apresentação que contribuam para a pregnância, os critérios de hierarquia informacional que privilegiem a assimilação e exploração dos dados observados nos debates, a manutenção de padrões gráficos que possibilitem o fácil reconhecimento e navegação entre os atores e suas associações visualmente expostos ou, ainda, o uso mais recorrente de artifícios de semelhança e contiguidade para com os objetos da representação. De outro modo, se a gramática da visualidade nos métodos digitais para a exposição dos debates e divergências apresenta lacunas em sua sintaxe e semântica, como tornar legível as questões de interesse (matters of concern) na apresentação gráfica das cartografias de controvérsias?

 

[1] Embora o termo possa ser compreendido enquanto sinônimo das imagens técnicas geradas por meio de computadores info–grafia, no presente texto ele é utilizado com o significado dicionarizado. Dessa forma, infográficos são tabelas, gráficos e diagramas com função de sintetizar, consolidar e apresentar gráfica e organizadamente a informação, permitindo a rápida recuperação, inferência ou observação acerca dos dados representados.

[2] Ver http://www.densitydesign.org/research/fineo/

Referências:

BOUNFORD, Trevor. Digital Diagrams. New York: Watson–Guptill Publications, 2000. 192 p.

LATOUR, Bruno. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern In Critical Inquiry Vol. 30 N.2 pp. 25–248, 2004.

TUFTE, Edward. R. The visual display of quantitative information. 2. ed. Connecticut: Graphic Press, 2006. 200 p.

VENTURINI, Tommaso. “Diving in Magma,” forthcoming in Public Understanding of Science. 19 (3):258, 2009. disponível em http:pus.sagepub.com/content/19/3/258.

VENTURINI, Tommaso. Building on Faults. How to represent controversies with digital methods. in Public Understanding of Science 21/7: 796. London: Sage, 2012. Disponível em http:pus.sagepub.com/content/21/7/796