Pensatas

O epicentro do terremoto foi seu celular

Nem mesmo a potência dos trios ou o ritmo dançante dos foliões do Carnaval de Salvador conseguiu repetir o alerta de emergência que despertou usuários deAndroid que moram no Rio de Janeiro, em São Paulo e emMinas Gerais em 14 de fevereiro de 2025. Apesar de toda energia soteropolitana, nenhum alerta de terremoto foi enviado aos usuários de Android. É justo dizer, porém, que a notificação enviada aos moradores do Sudeste nada teve a ver com o Carnaval. Naquela madrugada, anunciava um terremoto, orientava o uso de aquecedores de água ou cubos de gelo derretidos para hidratação, assim como pedia que ninguém deixasse sua residência descalço. Não era nenhum abalo sísmico, mas tremores produzidos pordados.

A partir da informação recebida por celulares na região, junto com a mediação de algoritmos que interpretam tais dados, o Sistema Android de Alerta de Terremotos emitiu um alerta. Segundo a Google, eledetecta vibrações a partir do acelerômetro do celular de usuários. Tal ferramenta identificou um movimento nas proximidades do litoral paulista e alertou, em tom quase apocalítico, para um desastre iminente. Como explica a companhia, “Se o telefone detectar algo que ele acha que pode ser um terremoto, ele envia um sinal para o nosso servidor de detecção de terremotos, junto com uma localização aproximada de onde o tremor ocorreu. O servidor então combina informações de muitos telefones para descobrir se um terremoto está acontecendo” (Google, [202?]). Trata-se, portanto, de um sistema complexo – que não deveria gerar alertas equivocados ainda que todos pulassem ao mesmo tempo atrás do trio.

A coleta dos movimentos do celular é acompanhada pela pletora de dados que alimentam as plataformas: equipamentos conectados na mesma rede, aplicativos baixados… Estes dados produzem e dão acesso a um mundo novo, cartografado por diversos instrumentos que permitem coletar aquilo que é “essencial” para entender um fenômeno. A pervasiva dataficação da vida envolve não apenas a extração natural de recursos para sustentar datacenters, mas também a “tradução do mundo em bits balizando uma forma de produzir conhecimento”. (Lemos, 2021). Este novo mapa do mundo, contudo, é tão eficiente quanto a qualidade, o tipo de dados utilizados para sua produção e as estratégias de análise.

O que a dataficação traz é um mundo que é outro, no qual um terremoto atinge o Rio de Janeiro – sim, o sistema se equivocou, mas o alerta é resultado de seu pleno funcionamento. Para entender essa outra percepção do mundo, podemos retomar a bomba de vácuo, exemplo apresentado por Latour em Jamais fomos Modernos. Sabemos que o vácuo existe, mas ninguém percebeu o vácuo naturalmente – na Terra, ele é produzido, é percebido somente em laboratório ou quando provocado (Latour, 1994). Os terremotos podem não ter assolado o Rio de Janeiro, mas existiram nos celulares.

Este mundo produzido não é tão objetivo, mas é tão verdadeiro como os instrumentos que o tornam visível. Embora alguns smartwatches tenham sensores que são validados pela Anvisa e são capazes de identificar arritmias, por exemplo, nada adianta se não estiverem adequadamente vestidos. Ainda que a coleta dos batimentos cardíacos seja adequada, tudo depende do modo como o relógio interpreta tais dados – é a diferença entre o alerta de ritmo sinusal ou de um infarto iminente. Um sistema em que diversos elementos se encadeiam e, se tudo estiver certo, temos uma percepção relativamente próxima daquilo que é observado diretamente – ainda que nossa percepção sobre o mundo é sempre mediada por algum instrumento de observação.

Os dados contam novas histórias, sobre as quais ainda sabemos pouco: o relógio me diz que meu sono foi ruim, ainda que eu tenha acordado descansado. Isso ocorre porque os dados coletados e os parâmetros utilizados são um pouco mais sensíveis do que nossa percepção corporal: observa-se o padrão respiratório, a frequência cardíaca, a temperatura da pele, identifica-se o ronco. Quando dormimos sem o relógio, nossa percepção sobre o corpo é mais direta: acordamos bem ou mal, sonhamos muito ou pouco na noite. São compreensões distintas do mundo, ambas podem estar corretas, sendo produzidas a partir de inputs e algoritmos distintos. Sua objetividade não pode ser comparada: ambas são tão verdadeiras quanto os instrumentos de acesso que as produzem.

Se avalio a qualidade do meu sono com base em minha percepção corporal sobre o descanso, não posso entender minha aferição como menos objetiva do que a avaliação feita pelo smartwatch mais avançado. Em seus específicos modos de verificação, ambos acertam – essas visões distintas do mundo, porém, se apresentam a quem dormiu e colidem entre si. Posso acordar – descansado! – e ver um alerta de terremoto em meu celular – preciso, então, verificar se faz sentido tal notificação.

Receber o aviso de um terremoto – e não sentir os tremores – é, sem dúvida, entrar em contato a percepção que a pervasiva coleta de dados nem sempre é eficiente.Em uma sociedade cada vez mais dataficada, precisamos entender como o mundo tem sido redesenhado pelos processos de coleta, processamento e análise de dados, que, quando falham, geram preconceitos, distorções e até terremotos que só existem no push do celular.

Referências

LEMOS, André. Dataficação da vida. Civitas: Revista de Ciências Sociais, [S.l], v. 21, n. 2, p. 193-202, mai.-ago. 2021.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994