Ensaios / In Vitro: Dossiê Covid-19

Pesquisa Social para os mundos COVID e Pós-COVID: Uma Agenda Inicial

tradução lupton

Por Deborah Lupton,
SHARP Professor in the Faculty of Arts & Social Sciences, University of New South Wales, Sydney, Australia.

Toda pesquisa social, diretamente relacionada à pandemia ou não, será inevitavelmente transformada a partir de agora. Lidamos hoje com um mundo COVID e outro Pós-COVID que se coloca à nossa frente.

Como uma acadêmica que teve a formação inicial em sociologia da saúde e em antropologia médica, com mestrado em Saúde Pública e um doutorado em sociologia da saúde pública concedido pela Faculty of Medicine, tenho estudado os aspectos sociais da saúde e da medicina ao longo de toda minha carreira.

Entre muitos assuntos relacionados à saúde, eu trabalhei com pesquisas sobre dois grandes tópicos gerais da saúde que foram alvos de políticas de saúde pública e de atenção por parte dos meios de comunicação. A primeira foi a pandemia de HIV/AIDS, que emergiu no início dos anos 1980. A segunda foi a denominada “epidemia de obesidade” deflagrada, no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, por anúncios de saúde pública e reportagens da grande mídia que apontavam para o drástico crescimento dos níveis de obesidade e de importantes problemas de saúde no mundo todo. As crises de HIV/AIDS e de obesidade geraram um impulso de pesquisa não apenas entre pesquisadores das ciências sociais, como também entre ativistas sociais, grupos comunitários e artistas; todos desempenharam um papel vital no entendimento das consequências e impactos sociais, culturais, psicológicos e políticos desse fenômeno.

Minha contribuição para a pesquisa social em HIV/AIDS começou com minha tese doutoral, que investigou como a imprensa australiana cobriu a pandemia desde de sua primeira menção até 1990, um período marcado por dramáticas mudanças sobre quem era considerado “em risco” de infecção (a tese foi publicada na forma de um livro em 1994, Moral Threats and Dangerous Desires: AIDS in the New Media). Enquanto realizava o doutorado em período parcial, trabalhei integralmente como pesquisadora em um projeto de saúde pública investigando o comportamento sexual e a prevalência da HIV e outras DST entre os heterossexuais australianos com múltiplos parceiros. Permaneci envolvida em outros importantes e diversos projetos sobre HIV/AIDS, incluindo a coautoria de um segundo livro que abordava representações televisivas da HIV/AIDS.

No início da atenção massiva dedicada à crise de obesidade a partir do final dos anos 1990, escrevi o livro Fat na tentativa de promover uma perspectiva sociológica sobre gordofobia, a discriminação social e o estigma que eram muito evidentes nas notícias e campanhas de saúde do governo. Também escrevi muitas publicações explorando os aspectos sociais dessa “epidemia” e editei um número especial sobre peso corporal e mídias digitais.

Agora, a pandemia do novo coronavírus (COVID-19) irrompeu, afetando todas as regiões do mundo, e os noticiários estão dominados por relatos sobre seus avanços e impactos. No momento em que escrevo, dezenas de milhares de vidas já foram perdidas ao redor do mundo, e muitos sistemas de saúde estão sobrecarregados com o ônus de cuidar de um número sem precedentes de doentes graves com pneumonia. A vida cotidiana foi abalada: escolas e locais de trabalho estão fechados, muitas pessoas perderam seus empregos, grande parte da população tem estado confinada em suas casas, as pessoas estão privadas das interações face a face e preocupadas com sua saúde e a de seus familiares.

A pesquisa social é de novo urgentemente necessária para documentar as experiências diárias das pessoas vivendo esse momento, como diferentes governos estão lidando com a pandemia e quais mudanças sociais estão ocorrendo agora, ou acontecerão em um mundo pós-COVID. Os pesquisadores sociais precisam contribuir para o entendimento sobre como as pessoas que viveram a pandemia foram afetadas, tanto física como mentalmente, e quais foram as medidas e políticas mais efetivas. É provável que surjam editais de financiamento para apresentação de propostas e projetos destinados a apoiar as pesquisas em saúde pública, medicina e ciências sociais sobre a COVID, tal como ocorreu com a HIV/AIDS e a obesidade. Este é o momento para aqueles que têm experiência relevante e interesse nesses campos considerarem o que podem oferecer de resposta a investigações tão necessárias.

A atual pandemia apresenta algumas características da pandemia da HIV/AIDS e da crise de obesidade, mas há também muitas diferenças. Todas as três crises receberam atenção midiática mundial e afetaram muitos países. Todas envolveram a identificação de grupos sociais considerados como ‘de maior risco’ e de ‘risco para outros’, acompanhado de bode expiatórios, vitimização, estigmatização, marginalização e negligência. Esses grupos não só diferiram entre si ao longo das crises de saúde, como também sofreram mudanças em cada crise específica. Todas as três crises são intensamente políticas, envolvendo reivindicações e contra-reivindicações sobre o conhecimento credível, cujas orientações deve-se confiar, e qual a melhor maneira de informar e gerenciar públicos e os grupos de risco/em risco. As crises de HIV/AIDS e de obesidade também envolveram o desenvolvimento de sistemas inovadores com apoio popular e de redes de ativistas que desempenharam um papel importante no apoio aos “grupos de risco/em risco”, combatendo o estigma e a marginalização, gerando e compartilhando conhecimentos manifestados pelos cidadãos. Já há evidências de que esses sistemas e redes estão emergindo em resposta à ameaça da COVID.

No entanto, a pandemia da COVID difere em pontos cruciais das crises da HIV/AIDS e da obesidade. Uma diferença é o alcance e a rápida expansão dos seus efeitos para além dos impactos relacionados à saúde. A COVID é um problema de saúde verdadeiramente global que irrompeu e se espalhou extremamente rápido, o que significou que organizações e indivíduos tiveram pouco tempo para assimilar e responder adequadamente a ela. Outra diferença-chave são os efeitos econômicos e sociais da pandemia de COVID, além dos efeitos de saúde imediatos de contrair ou espalhar o vírus. As medidas de quarentena, isolamento social e distanciamento físico, imprescindíveis para limitar as taxas de disseminação do vírus COVID (SARS-Cov-2), fizeram, de repente e inesperadamente, milhões de pessoas desempregadas na maior parte do mundo.

Uma terceira grande diferença é que os meios e dispositivos digitais desempenham um papel muito mais crucial na pandemia de COVID em comparação com as crises da HIV/AIDS e da obesidade, quando a internet, os dispositivos móveis e as redes sociais não existiam ou estavam nos seus primórdios. Já vimos como as mídias sociais contribuíram para espalhar desinformação e pânico, mas também desempenharam papel crucial ajudando as pessoas a lidar com o impacto do isolamento físico, oferecendo formas mediadas de conexão que amenizam o tédio e a solidão. Por último, os processos e planos de investigação social tiveram que ser repensados. As medidas de distanciamento impedem, por enquanto, que os modos tradicionais de pesquisa com contato pessoal possam ser realizados. Tecnologias digitais (ou mesmo o bom e velho método do papel e caneta) oferecem algumas soluções para conduzir trabalho de campo em uma pandemia.

Tendo isso em mente, apresento a seguir uma lista de questões como uma maneira de dar início a uma agenda de pesquisa em ciências sociais para os mundos COVID e Pós-COVID. (Note a importante ressalva de que esses são apenas pensamentos iniciais baseados na situação atual nesses primeiros meses de pandemia em que as condições mudam rapidamente). Investigar esses tópicos gerará melhores entendimentos, não apenas dos atuais impactos sociais da COVID, como também dos novos e persistentes impactos no futuro. As descobertas terão aplicações imediatas e a longo prazo, contribuindo para o desenvolvimento de políticas e serviços a fim de apoiar melhor o público à medida que lidam e se recuperam dos inúmeros desafios que estão enfrentando em seu modo de vida e estado de saúde. Elas também oferecerão vislumbres de como lidar e gerenciar novas crises de saúde em grande escala de forma ética e eficaz.

Questões-chave da pesquisa social

⦁ Quais são as respostas locais estabelecidas pelas agências governamentais e organizações de saúde à pandemia, e como estas diferem entre os países? Que agências e organizações foram mais eficazes no combate à propagação da COVID entre suas populações?

⦁ Como pessoas de diferentes grupos sociais e localizações geoespaciais estão respondendo à crise? Quais são as experiências e as relações sociais vividas à medida que os efeitos da pandemia continuam a se desenrolar para o futuro do mundo pós-COVID? Como atributos como localização, idade, sexo, estado de saúde ou deficiência, etnia/raça, rendimento, formações educacionais, situação de emprego e moradia estruturam as suas experiências e bem-estar?

⦁ Quais indivíduos e grupos sociais são alvo de negligência, estigma ou marginalização? Como isto foi reconhecido e tratado (ou ignorado) em diferentes ambientes sócio-geográficos-políticos?

⦁ Quais foram as razões subjacentes ao pânico generalizado para comprar que esvaziou as prateleiras de bens essenciais nos supermercados por semanas a fio, e como essas respostas podem ser melhor gerenciadas no futuro?

⦁ Como o bem-estar geral e a saúde mental das pessoas foram afetados pelas atuais condições da crise e no futuro, e como podem ser melhor apoiadas, ética e eficazmente?

⦁ Como as relações familiares foram influenciadas pelo confinamento nos lares por longos períodos e quais são as consequências positivas ou negativas (por exemplo, aumento do risco de ser vítima de violência familiar para as mulheres e crianças, mulheres pós-parto que perdem apoio para seus novos bebês por parte de membros da família agregada)?

⦁ Como crianças e jovens estão lidando com a ruptura de suas rotinas habituais de educação e de relações sociais, agora e no futuro pós-COVID?

⦁ Quais são as experiências vividas pelos profissionais de saúde e outros trabalhadores de apoio fundamentais para lidar com as condições de trabalho que enfrentam, e quais são as implicações para a sua saúde e bem-estar atuais e a longo prazo? Como eles podem ser apoiados agora e no futuro?

⦁ Quais sistemas de apoio socioeconômico oferecidos por agências governamentais e não governamentais melhor geriram a crise e como devem auxiliar no futuro pós-COVID?

⦁ Como as tecnologias digitais contribuem para a difusão da informação – quais as mais benéficas e úteis para o público?

⦁ Quais mídias e dispositivos digitais foram os mais benéficos e úteis para o público lidar com as condições de isolamento físico?

⦁ Quais tecnologias digitais de saúde têm sido mais eficazes e úteis para oferecer autodiagnostico e tratamento? Quais são as experiências dos pacientes e dos profissionais de saúde na oferta de formas mediadas de diagnóstico e cuidados?

⦁ Qual é o papel desempenhado pelas novas tecnologias digitais, tais como dispositivos “inteligentes”, drones e software de tomada automatizada de decisão nos sistemas de vigilância da saúde e de diagnóstico?

⦁ Como os arranjos educacionais e de teletrabalho obtiveram suporte das tecnologias digitais, e quais têm sido mais benéficos e úteis?

⦁ Como as práticas de trabalho dos professores em todos os níveis do sistema educativo (do fundamental ao superior) mudaram? Quais são as perdas e ganhos para estudantes e professores na mudança para o ensino e aprendizagem online?

⦁ Como os sistemas de educação e de trabalho irão mudar em consequência do mundo pós-COVID?

⦁ Como as grandes empresas de internet e as start ups reagiram à crise?

⦁ Quais formas de organização popular e de trabalho em rede surgiram, e quais as mais úteis e eficazes para as comunidades, agora e no futuro?

⦁ Como os agentes mais-que-humanos contribuíram para apoiar a saúde e o bem-estar das pessoas em condições em que foram obrigadas a ficar fisicamente distantes de outras (por exemplo, animais de estimação, plantas, paisagens naturais, corpos d’água)?

⦁ Quais métodos de pesquisa podemos utilizar para compreender as dimensões mais-que-representativas das experiências vividas pelas pessoas (suas respostas afetivas e sensoriais, experiências de espaço e lugar)?

⦁ Que teorias sociais e culturais podem nos ajudar a entender o mundo da COVID e do pós-COVID?

Vamos começar!
Foto por Liam Richards no Unsplash

Tradução: Giovanna Marques. Supervisão: André Lemos