Por: Daniel Marques – UFRB/LAB404
Em 19 de dezembro de 2018 a Blizzard Entertainment realizou uma grande atualização de balanceamento para Hearthstone, um dos mais representativos jogos da empresa. Trata-se de um jogo digital competitivo de cartas lançado em 2012, desenvolvido como parte da expansão da franquia Warcraft e em reflexo ao declínio global dos MMORPGs, gênero através do qual a Blizzard atingiu a sua magnitude. Tomando como base os fundamentos de design de jogos como Magic: The Gathering, Hearthstone rapidamente gerou uma robusta base de jogadores para a Blizzard, com 70 milhões de jogadores registados até novembro de 2018.
O jogo conta com uma ampla e diversificada cena competitiva, mobilizando jogadores, streamers, analistas, comentadores, campeonatos e múltiplos sites e fóruns que especulam sobre as melhores estratégias competitivas e sobre o futuro de Hearthstone. Um breve passeio pelo Twitch.tv, por exemplo, revela a amplitude da audiência em termos globais, bem como a realização de múltiplos eventos e novas práticas de interação entre produtores de conteúdo e consumidores – dinâmicas de espectorialidade. Jogos competitivos dessa natureza tendem a formar, portanto, um jogo para além do jogo – metagame –, no qual jogadores e instituições negociam e tensionam os limites em busca de maiores níveis de eficiência, assertividade e, consequentemente, vitória. Os sujeitos envolvidos na economia que se forma nas bordas desses jogos – de jogadores profissionais a casters em campeonatos organizados – dependem, portanto, da sua manutenção constante como forma de manter a comunidade ativa. O cancelamento do suporte ao cenário competitivo de Heroes of the Storm (outro jogo da Blizzard), por exemplo, impactou diretamente múltiplos profissionais que dependiam do jogo como fonte de renda.
Voltemos à atualização de balanceamento supracitada. A partir da alteração do funcionamento de cartas-chave (Figura 01) para algumas das estratégias competitivas predominantes no jogo, todo o metagame se alterou em questão de horas. Determinados baralhos – decks – que dominavam os campeonatos e a experiência competitiva de alto nível deixaram de existir num piscar de olhos. Ainda hoje, algumas semanas após a atualização, ainda se discute as repercussões e consequências dessa atualização. Argumentaremos, mais a frente, que decisões como essa apontam para um aprofundamento do processo de plataformização da cultura e sociedade.
Fig.01: Alteração do custo de Mana da carta Wild Growth. Fonte: Blizzard.com
Tratemos, agora, de outro caso. Em outubro de 2018 mesmo ano a Transalvador – Superintendência de Trânsito de Salvador/BA – lançou o projeto Zona Azul Digital, uma estratégia para sistematizar a venda de créditos para estacionamentos públicos rotativos através de aplicativos digitais (apps). Tradicionalmente realizada por guardadores terceirizados através de cartelas impressas, a ideia do projeto é extinguir essa modalidade. A partir dos apps o usuário pode comprar créditos previamente, cadastrar seu veículo, receber alertas sobre o tempo de estacionamento etc. Essa alteração modifica a rotina também dos fiscais de trânsito que, agora, passam a consultar as placas em outro app dedicado a essa tarefa. A utilização dos apps por motoristas requer cadastro com CPF e outros dados pessoais.
Seis diferentes aplicativos já estão em funcionamento, todos desenvolvidos e operados por empresas privadas diferentes. Enquanto alguns deles estão sob o comando de empresas diretamente relacionadas ao setor (estacionamentos e mobilidade urbana), é interessante perceber que a maioria dos apps é gerenciada por companhias mais amplas de tecnologia e inovação. Algo semelhante acontece em outro âmbito da mobilidade urbana em Salvador, com o lançamento e operação do CittaMobi, responsável pelo rastreamento da frota de ônibus da cidade. Tanto no âmbito do gerenciamento dos estacionamentos públicos quanto na gestão e rastreamento da frota de ônibus, ambos os casos apontam para o desenvolvimento de plataformas operadas em parceria-público privada para o oferecimento de serviços ao cidadão.
Fig.02: App Salvador Zul Digital. Fonte: Newsba.com
O que Hearthstone, Cittamobi e apps de estacionamento tem em comum? Embora possam parecer desconectados, todos os casos descritos acima se configuram como evidências do avanço da plataformização da cultura e sociedade. Em situações e qualidades diferentes, cada um desses exemplos demonstra o estabelecimento das plataformas digitais como instância mediadora de múltiplos fenômenos culturais e sociais contemporâneos, dos games à mobilidade urbana. Para além de se restringir a grandes conglomerados de mídia como o GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), a crescente institucionalização das plataformas como norma aponta para a emergência e consolidação de uma economia digital baseada em processos de coleta, processamento, análise e compartilhamento de dados. As plataformas digitais são o ambiente ideal para o florescimento dessa nova instância do capitalismo contemporâneo. Esse é o argumento central de Srnieck (2017), a ascensão das plataformas digitais surge enquanto estratégia de reestruturação do capitalismo para produzir e maximizar novos modelos de negócio.
Visualizamos esse processo nos exemplos tratados anteriormente. Diferentemente de outros jogos, a Blizzard gerencia Hearthstone como uma plataforma, ou melhor, com uma orientação direcionada para o capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2017). O periódico lançamento de novas cartas e expansões, o balanceamento em cartas já existentes, a institucionalização de campeonatos, o fomento ao desenvolvimento de novos mercados (e-sports) e novos profissionais (pro players, casters, streamers etc.) faz com que Hearthstone esteja, hoje, muito mais próximo de outras plataformas como os apps de estacionamento do que de alguns jogos digitais. Ambos os casos nos ajudam a entender a plataformização de diferentes aspectos da vida cotidiana – a competitividade e esportividade em Hearthstone e certa dimensão da mobilidade urbana com os apps de estacionamento. Entendemos como plataformização a crescente mediação de diversos setores e atividades sociais, econômicas e políticas por plataformas digitais. Essas plataformas digitais, por sua vez, passam a atuar em prol da organização e gerenciamento das interações culturais, políticas e socioeconômicas em busca de agendas específicas.
As plataformas digitais são, portanto, dispositivos algorítmicos desenvolvidos no sentido de organizar as experiências de usuários, produtores de conteúdo, instituições e mediadores. Seu funcionamento depende de um amplo e sistemático processo de coleta, processamento, análise e monetização de dados dos usuários. A partir de estratégias de dataficação, comodificação dos dados gerados e da seleção/personalização das interações, as plataformas buscam ir além da facilitação de determinadas relações sociais, mas passam cada vez mais a moldar a forma como se organizam diferentes setores sociais. Nesse sentido, as plataformas são alimentadas por dados, automatizadas por algoritmos e acessadas através de interfaces digitais, constituídas de relações econômicas e de poder, orientadas por modelos de negócio específicos (VAN DIJCK; POELL; DE WAAL, 2018).
Vejamos como a lógica da plataformização se manifesta em cada exemplo. Embora seja free-to-play, Hearthtone exige um investimento – seja de tempo ou dinheiro – periódico por parte dos jogadores na aquisição de novas cartas, de forma a possibilitar que os jogadores se mantenham competitivos. Esse investimento, portanto, é amplamente pautado no estado atual do metagame, ou seja, das estratégias de jogo e decks que, naquele momento, têm obtido maior sucesso na ladder e/ou em campeonatos de alto nível. Sites como HSReplay.net, por exemplo, oferecem estatísticas em tempo real de como os decks estão performando no cenário competitivo, possibilitando aos jogadores ter uma ideia mais transparente do estado do metagame. Entretanto, essas estatísticas são aferições pouco precisas, tendo em vista que os dados não são obtidos diretamente dos servidores da Blizzard, mas através de plugins instalados nos computadores de jogadores dispostos a contribuir com a iniciativa.
A Blizzard, por outro lado, é detentora de toda a inteligência baseada em dados gerados em todas as partidas. O sucesso de um jogo competitivo como Hearthstone depende de uma dinâmica específica de alteração no metagame, a medida em que determinada estratégia ou baralho se torna dominante, o jogo se estabiliza, torna-se previsível. Numa perspectiva de experiência e design, balanceamentos como o citado no início deste texto ajudam a afetar o metagame e potencializar a emergência de novas estratégias criativas de jogo. Entretanto, sob o viés da plataforma, o mesmo dinamismo e criatividade são essenciais para que toda a economia digital ao redor do dispositivo continue e movimento: jogadores profissionais precisarão adquirir novas cartas, analistas e youtubers precisarão produzir novo conteúdo, streamers precisarão testar novos baralhos, fóruns e sites continuarão ativos e lotados de discussões e especulações. Embora Hearthstone enquanto jogo ocupe o centro da questão, a plataforma, bem como sua agência e sensibilidade, manifesta-se espalhada e dispersa na rede. As decisões institucionais de orientam o metagame de Hearthstone, portanto, são informadas pela sistemática coleta e análise de dados dos usuários, que, em certa medida, oferecem um trabalho imaterial para a plataforma no que diz respeito à negociação e tensionamento das regras e limites do jogo. O modelo de negócio da Blizzard requer a dataficação das interações dos jogadores, que atuam enquanto consumidores e produtores de conteúdo simultaneamente.
O mesmo ocorre em relação aos apps de estacionamento, embora numa situação diferente. Seria ingênuo considerar que a plataformização de serviços de mobilidade urbana diz respeito somente a uma melhora no oferecimento do serviço, embora esse seja o discurso oficial. Assim como a Blizzard toma decisões relacionadas ao design de seus jogos informada pela coleta e processamento de dados provenientes da interação com suas plataformas, o mesmo pode ocorrer quando observamos os apps de estacionamento. Há um potencial de inteligência latente nos dados gerados por motoristas que utilizarem esse serviço, um potencial muito mais significativo do que os dados podem, à primeira vista, revelar. Além disso, esses apps passam a negociar com arranjos sociais pré-existentes nos diversos campos. A introdução de plataformas digitais na mediação entre motoristas e estacionamento urbano instaura novas relações de poder, produzindo interações performativas que agem sobre a sociedade.
A plataformização, portanto, não emerge somente como um trend no cenário das tecnologias contemporâneas de comunicação de informação, não é somente uma nova palavra-chave utilizada para vender best-sellers (“Como transformar seu negócio em plataforma e engajar consumidores!”) e palestras motivacionais. Trata-se, na verdade, de uma complexa estratégia capitalista de atualizar o mercado contemporâneo para a lógica dos dados, como aponta Srnieck (2017).
As plataformas, portanto, são novos mediadores que passam a extrair valor e potencializar modelos de negócio baseados em dados, sempre em busca de monopolizar, extrair e analisar vastas quantidades de informações provenientes da interação entre usuários e dispositivos. Possivelmente está aqui a efetiva diferença entre Hearthstone e apps de estacionamento. Certamente a Blizzard, bem como o GAFAM, apoia-se em sofisticadas estratégias baseadas em dados ao gerenciar sua plataforma, como a atualização de 19/12/2018 demonstra. Entretanto, a questão se torna nebulosa no caso dos apps de estacionamento. Embora a politização das plataformas e de seus modelos de negócio seja fundamental, cabe considerar o nível de profundidade com que o poder público lida com esse fenômeno.
Para além disso, ainda mais urgente é compreender como se dá o tratamento dos dados gerados por essas plataformas cidadãs por parte das empresas privadas que atuam em seu gerenciamento, bem como nos efeitos desse tratamento. Dos games à mobilidade urbana, as plataformas passam a co-produzir, em processos de interação e mediação, novas condições de trabalho, novas formas de subjetividade e novos conflitos.
REFERÊNCIAS
SRNICEK, N. Platform capitalism. [s.l.] John Wiley & Sons, 2017.
VAN DIJCK, J.; POELL, T.; DE WAAL, M. The Platform Society. [s.l.] Oxford University Press, 2018. v. 1