Por: Elias Bitencourt – UNEB/LAB404
Uma pedra para o corpo
Na ocasião do meu estágio sanduiche em Montreal tive a oportunidade de experimentar uma curiosa pedra que respira. A Spire Stone[1]é um wearable que monitorao ritmo respiratório a partir do movimento de contração e expansão do tronco. Quando mantido com a face em contato com a pele (Fig 1), o vestível sente a distensão do abdômen ou do tórax e o estado de repouso do corpo (deslocamento nulo).
Fig.1 – Da esquerda para a direita: vistas e dimensão do Spire; locais de uso do wearable no corpo, detalhe da fixação do dispositivo.
Os algoritmos da pedra classificam as variações desses movimentos como estados mentais (calmo, focado ou tenso) e avisam, por meio de padrões de vibração e notificações no smartphone, quando o usuário se mostra tenso por um tempo. Na interface do aplicativo, é possível acompanhar a curva respiratória em tempo real, realizar sessões guiadas com técnicas de controle de ansiedade e visualizar o relatório diário do perfil emocional. O acesso à localização geográfica e dados do calendário solicitados pela API da Spire, oportuniza uma leitura contextualizada dos estados mentais, facilitando a relação entre um momento de tensão, um ambiente ou um evento (Fig2).
Fig.2 – Da esquerda para a direita: vistas e dimensão do Spire; locais de uso do wearable no corpo, detalhe da fixação do dispositivo.
A pedra no corpo
Minha experiência com a Spire teve início numa tarde do dia 16 de outubro de 2017, na loja da Apple da av. St. Catherine, centro de Montreal. Achei o objeto estranho, comprei. Configurei-o ainda no balcão, anexei-o ao corpo e segui.Andei por quase trinta minutos a caminho de uma conferência do Roger Dingledine que ocorreria no departamento de comunicação da McGill[2] algumas quadras dali. Errei o trajeto algumas vezes, estava atrasado. Apesar da tensão, não recebi qualquer sinalização de que estivesse respirando de maneira fora do padrão. A pedra estava silenciosa, eu ansioso.
Ao entrar no auditório, a conferência já tinha se iniciado. Não havia assentos livres e precisei me acomodar no degrau da escadaria principal. Em pouco tempo de conferência, meu pulso vibrou. O Apple Watch sinalizaelevação cardíacatodas as vezes que estou em repouso por mais de 10 minutos e ultrapasso 110 bpm. Após semanas de uso ininterrupto, já havia notado uma relação muito forte entre os avisos de elevação e meus momentos de ansiedade. Na ocasião do auditório, encontrava-me um pouco preocupado e ofegante pela caminhada. O Watch estava correto e fez perceber meu estado emocional, a pedra permanecia quieta.
Vinte minutos mais tarde foi a vez do meu abdômen tremer, me assustei. Lembrei da Spire pelo desconforto que ela provocou. No aplicativo, a indicação de que minha respiração se mostrava tensa por algum período. Hesitei. Conferi o Apple Watch e minhas pulsações eram compatíveis com meu estado de repouso. Não me percebi estressado, tudo corria estranhamente bem. Ignorei. Uma sucessão de vibrações intercaladas reapareceuinstantes depois. Fiquei alerta. A cada novo estímulo tátil, conferia o relógio. Meu coração era a referência até me deparar com os insistentes pareceres assíncronos da pedra. Havia três opiniões diferentes sobre o meu corpo naquelaocasião. O coração ia bem, assegurava o relógio. Eu me percebia focado e atento. A Spire insistia que algo estava fora da ordem.
Mesmo tomando a percepção corporal como referência, titubeei. Estaria a pedra me avisando coisas que eu ainda não percebo? Será que os algoritmos delaeram mais precisos em identificar estados mentais através da respiração? Se o Apple Watch não foi criado para avaliar emoções e a relação entre elevação cardíaca e ansiedade era fruto da minha interpretação, a Spire não deveria ser mais confiável?
A pouca sintonia entre as coisas no meu corpo aos poucos me contaminou. Inicialmente duvidei do que os objetos informavam, depois passei a questionar corporalmente do que sentia a partir do que eles me apresentavam. As vibrações permaneceram na cintura indicando coisas distintas. Das seis vezes que o gadget respiratório me convocou durante o evento, quatro delas eram avisos de um estado mental de tensão, as outras duas continham a notificação: remember to breathe! (lembre de respirar!).
Usei o wearable por um mês. Nesse tempo, observei que os estados mentais diagnosticados, quando coerentes, não encontravam endosso no Apple Watch que, até o momento, continua acertando nos palpites. Sem informações úteis, abandonei a Spire. Hoje ela repousa como um objeto decorativo na minha mesa, mas as variações emocionais registradas por ela tiveram um desfecho mais dinâmico. Nesse exato momento, esses dadoscertamente circulam de servidor em servidor, alimentando os algoritmos de outras pedras que seguem pedindo dado em troca do inevitável: Breathe!
As coisas reunidas na pedra
Embora a Spire se apresente como um objeto inteligente capaz de me auxiliar na redução da ansiedade pelo monitoramento da respiração, a digitalização dos meus padrões e a interpretação dos dados são dependentes de uma rede que extrapola os limites físicos da pedra em si. Corpo e sensor, objeto e smartphone, memória local e servidores remotos trabalham sincronicamente para que a informação seja construída.
Essa atividade conjunta é orquestrada por um regime de ação mais amplo. Para que a informação circule entre os diferentes nós da rede da pedra, é necessário que o gadget seja confortável (5) e tenha autonomia de energia (2); que o dado da performance corporal extraído pelo sensor (4,7) seja compatível com a unidade de processamento (3), com o protocolo de transmissão do bluetooth (6), com o aplicativo do smartphone e com os sistemas dos servidores remotos (Fig. 3).
Fig.3 – Principais componentes integrados da Spire. Fonte: Imagens de divulgação
Em trabalhos anteriores, denominamos Sensibilidade Performativa (LEMOS; BITENCOURT, 2017, 2019)esse regime agencial da informação nos objetos inteligentes. A Sensibilidade Performativa (SP) caracteriza o modelo disperso de agir algoritmicamente que cria as condições de existência da rede do wearable;definindo o tipo de gramática do código, os modelos de servidores, a ergonomia da pedra; atribuindo propriedades aos nós e performatizandomúltiplas cadeias de ações dedicadas à produção de dados corporais.
A SP é um modo de agir pela informação para produzir informação. Uma mediação queengendra materialidades informacionalmente – reunindo coisas, montando a rede, interferindo nas escolhas projetuais dos gadgets, afetando os sensores através de procedimentos algorítmicos e modelando práticas de aquisição de corpos por meio do dado. É através desse agenciamento algorítmico da SP que as coisas da rede ganham vida (INGOLD, 2010) e que os artefatos deixam de ser objetosmeramente sensíveis (reagentes a estímulos) para se tornarem coisas sencientes – dispositivos capazes de perceber a si mesmos em relação ao ambiente e de tomar decisões autonomamente(LEMOS; BITENCOURT, 2017).
Latour propõe que os fenômenos só existem pela reunião de coisas – things gathering(LATOUR, 2004). A ideia de coisas reunidasem Latour se contrapõe àsnoções de estabilidade e essência frequentemente associadas aos “objetos”, dando relevoao caráter sempre híbrido e circunstancial dos eventos. Nessa perspectiva, a Spire não seria propriamente um “objeto inteligente”, mas uma “Coisa” que se faz inteligente pela reunião de múltiplas coisas necessárias à existência da informação digital.Dessa maneira, o meu corpo, os sensores, osoftwaree os servidores figuram enquanto asquestões materiais de interesse – matter of concern (LATOUR, 2004, 2008) – para aprodução de narrativasalgorítmicassobre as práticas corporais cotidianas – andar, comer, dormir, respirar, exercitar, meditar etc.
As subsistências dos meus estados mentais
No caso da Spire, não é possível separar o modelo heurístico do meu corpo no sistema da pedra, o design do objeto, os protocolos de interação, os reflexos dessa informação na minha percepção corporal e os servidores da marca. Podemos dizer que essa reunião de coisas sãoformas de subsistência (LATOUR, 2013) da informação digital sobre meus estados mentais diagnosticados pelo vestível.Entender as materialidades da informação como subsistências significareconhecer que o código e os dados precisam passar por muitas outras coisas (sensores, servidores, movimentos do corpo etc.) para que essa informação se instaure.
A proposta de ler as materialidades como subsistências reconhece que todas as coisasna trajetória de instauração dos artefatos inteligentes, e que interessam (matter of concern) à experiênciainvestigada, são expressõesmateriais da Coisa. No caso relatado, a pedraé uma dessas coisas (subsistências) que foram convidadas a participar da redede um fenômeno bio-info-comunicacional mais extenso. O exame dessas materialidades, portanto, não se prende às manifestaçõessimbólicas ou físicas imediatas (o wearable, os relatórios no aplicativo ou as minhas percepções), mas se prolonga nos arranjos materiais estabelecidos pelas associações que subjazem à experiência e à existência da rede.
Isso implicadisposição para explorar as mídias inteligentes naquilo que as fazem diferir, observando as negociações que os corpos, os códigos, os sensores, gadgetscoconstroem e as cadeias de ação que lhes conferem vitalidade(BENNET, 2010). Esse é, sem dúvidas, um desconcertanteexercício investigativo que busca acolher o fluxo e a estabilidade, o físico e o simbólico, a ação e os efeitos das mídias algorítmicas como aspectos ontológicos desses nossos complicados modos de comunicar.
Remembering to breathe
O tal lembrete para me manter respirando tinha dois objetivos, assegurar a performance corporal necessária à ação da Spire e me recordar o motivo de tê-la adquirido – conhecer minhas emoções pelo dado digital. A contração do meu abdômen para a pedra era tão vital quanto o oxigênio para o meu cérebro. Sem informação adequada, o wearable, os sensores e o meu corpopassaram a conviver em isolamento, restando a mim o desconforto tátil do objeto na cintura e à pedra algumas horas de bateria antes da desconexão absoluta. Se as muitas materialidades dos vestíveis, isoladamente, não são capazes de conferir a eles o status de “seres da comunicação”, o exame empírico dos seus regimes ontológicos minimamente denuncia uma inconveniente semelhança: eu e a pedra somos coisas que existem pela informação.
Referências
BENNET, Jane. Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham, London: Duke University Press Durham, NC, 2010. Disponível em: <http://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S175545861000054X>.
INGOLD, Tim. Bringing Things to Life: Creative Entanglements in a World of Materials. ESRC – National Centre for Research Methods, v. NCRM Worki, n. July, 2010.
LATOUR, Bruno. An Inquiry Into Modes of Existence. An Anthropology of the Moderns. 1. ed. London, England: Harvard University Press Cambridge, Massachusetts, London, England, 2013. v. 1.
LATOUR, Bruno. WHAT IS THE STYLE OF MATTERS OF CONCERN. Spinoza Lectures. [S.l.]: Van Gorcum, 2008. p. 1–50.
LATOUR, Bruno. Why Has Critique Run out of Steam? From Matters of Fact to Matters of Concern. Critical Inquiry, v. 30, n. 2, p. 225–248, 2004. Disponível em: <http://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/421123>.
LEMOS, André; BITENCOURT, Elias. “I feel my wrist buzz”;. SmartBody and Performative Sensibility in FitBit Devices. Galaxia (Online), v. 1, n. 36, p. 5–17, 2017. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/32919>.
LEMOS, André; BITENCOURT, Elias. “Move and Be Healthy!”: Performative Sensibility and Body Experiences Mediated by Wearable Devices in Brazil. In: PEREIRA NETO, ANDRÉ; FLYNN, MATTHEW B (Org.). . The Internet and Health in Brazil : Challenges and Trends. Cham: Springer International Publishing, 2019. p. 415–434.