Por Rodrigo Firmino
Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana da PUCPR, pesquisador 1C CNPq, membro-fundador da Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade, LAVITS.
É possível pensar na territorialização de um vírus? Qual a geografia política de uma pandemia, para além de dados epidemiológicos cartografados? Como se constrói o território do novo coronavírus? Se assumirmos uma das definições possíveis de território, que o considera um artefato de poder e controle materializado em um recorte espaço-temporal, como é possível considerar um território viral?
Para considerar tal hipótese é preciso aceitar a ideia de que o vírus possui agência. O infectologista estadunidense, Anthomy Fauci, cunhou a frase que se tornou um dos símbolos desse período de restrições e mudanças, e que ilustra a construção social do novo coronavírus: “você não faz a linha do tempo, o vírus faz a linha do tempo”[1]. Além disso, é necessário discutir uma materialidade do novo coronavírus (ou qualquer vírus) que não se limite a uma composição microscópica formada por um fragmento de DNA ou RNA envolto por uma capa de proteína. Tampouco pode-se limitar a compreensão da materialidade pela interação dessa estrutura bioquímica com células hospedeiras (infectadas) e o corpo composto por essas células. O fato de vivermos o que se considera uma pandemia global tem muito a dizer sobre essa materialidade e suas territorializações.
Um processo de contaminação que se iniciou, até onde se sabe, em uma província chinesa e em poucos meses se espalhou para todos os continentes, está conectado à cadeias de relações tecnopolíticas e culturais tão complexas, que não podem ser explicadas apenas pela engenharia biológica de composição de um vírus e pela racionalidade epidemiológica. Em diferentes proporções, a materialidade tecnopolítica de qualquer vírus pode ser explicada por suas características bioquímicas, mas também pelas formas de contágio, medidas de contenção, de prevenção, de tratamento, de explicações especializadas (assim como de produção de notícias falsas e negacionismo), de redes de pesquisa, de sistemas de saúde, da indústria farmacêutica, de estratégias de contingência para os efeitos da pandemia, da própria declaração de estado de pandemia, das possíveis relações com outros vírus, outras doenças e, consequentemente, outras formas de tratamento, das tecnologias de detecção de contágio e controle de infectados, das respostas imunológicas, dentre tantas outras redes de relações.
O novo coronavírus está definido por seu próprio arranjo sociotécnico, envolvendo essas diversas possibilidades de atores, interesses, interpretações, artefatos e estratégias de fechamento e estabilização, para usar termos da Construção Social das Tecnologias (Bijker, 1997)[2]. Sua materialidade é dada por este arranjo que o define de variadas formas (depende de onde olhamos, a quem ouvimos, que história valorizamos). Mas se é possível assumir a materialidade do vírus pela rede tecnopolítica que envolve este simples composto bioquímico, seria possível definir sua territorialidade da mesma maneira? Sua materialidade mostra-se relativamente tangível diante de tudo que estamos passando ainda sob os efeitos de uma pandemia descontrolada.
Por outro lado, como é possível visualizar e interpretar as territorializações advindas dessa materialidade, se território é definido pela expressão de poder e controle em um recorte espaço-temporal? Se território envolve algum grau de soberania (de quem define suas fronteiras, de quem se vê como parte constituinte dessa porção do espaço, de quem exercita o poder e impõe modos de ser e de existir), é possível falar em uma soberania do vírus que despreze a constituição de outros territórios, mais antigos, consolidados e permanentes (como o estado-nação, por exemplo)? Creio que seja, de fato, possível falar sobre uma territorialidade viral, multiescalar e rizomática, pois ao invés de desprezar outras formações espaciais de poder, se recompõe a partir destas, adapta-se, e tensiona suas bases de formação. Tentarei explicar como vejo esse tensionamento que cria não um território viral, mas um território pandêmico.
Tudo que conhecemos depende de relações em rede para ter significado histórico e social. Mas algumas coisas, dentre as quais o vírus, sequer existiriam materialmente se não houvesse redes. Sem a transmissão de um hospedeiro a outro, o vírus perde sua ação, perde sua razão de existir como composto bioquímico. Assim, há uma relação direta entre a materialidade social do vírus e as variadas amplitudes de seu território de incidência. O vírus não está em uma rede, ele é uma rede. E como parte elementar de uma cadeia de relações, o vírus impõe sua territorialidade e constrói territórios com variadas temporalidades, que desafia fronteiras legais e materiais simultaneamente por sua presença e por sua ausência. A presença impõe o território de isolamento de pessoas infectadas, em muitos casos marcado pelo confinamento e a redução de contatos físicos—são os hospitais, locais de quarentena e zonas de contágio. A ausência do vírus também define territórios, por vezes mais porosos e com fronteiras mais frágeis, pautados pela manutenção da não infecção—formados pela impossibilidade de uso, pela delimitação de perímetros de permanência, pela determinação de distâncias de contato e zonas de segurança epidemiológica.
Mas sob qual escala pode-se pensar em territórios virais como os do novo coronavírus? É o corpo de pessoas infectadas? Ou é a casa de uma pessoa em quarentena, ou um hospital? Os espaços urbanos impossibilitados de serem usados e frequentados? As diferentes regiões de um país sob leis com distintas restrições de movimentação e funcionamento de atividades? Ou seria possível definir graus de territorialidade interconectadas em escala continental, já que estamos tratando de uma pandemia global? Creio que respostas parciais a essas perguntas ajudam compreender as características incomuns de territorialidade nas circunstâncias de pandemia global de um vírus relativamente contagioso, desconhecido e cujas ações de contenção afetam essencialmente as possibilidades de sociabilidade no espaço urbano e a capacidade de mobilidade de corpos sadios e infectados.
É curioso notar como várias camadas tecnopolíticas estabelecem movimentos de de-re-territorialização (Haesbaert, 2007)[3], ou processos de constantes redefinições de fronteiras e disputas de poder na constituição de territórios. Isso se dá a despeito de limites consolidados, tensionando as relações que definem os espaços geopolíticos atuais. Um exemplo claro desse comportamento territorial do vírus no nível dos estados-nação são os constantes embates entre diferentes níveis de governo e a autonomia na gestão sobre a circulação de pessoas e bens, e das possibilidades de uso de espaços e serviços nas cidades, nos estados e no país inteiro.
Esses processos de des-re-territorialização são visíveis na transformação de um estádio de futebol em hospital de campanha, na determinação de não se ocupar faixas de areia das praias, de se fechar parques e praças—e em um momento diferente, estabelecer zonas de contato e distanciamento nesses locais—, de protocolos de acesso e comportamento em locais de maior movimentação de pessoas, etc. A presença e a ausência também são determinantes nesses casos. O vírus está no hospital, e é desejável conter suas ações nesse tipo de espaço, mas não está necessariamente presente no parque onde as pessoas permanecem em seus círculos de isolamento (Figura 1), e é desejável que ele não esteja nesses espaços. Seja pela presença ou pela ausência, todos esses processos de territorialização são primariamente influenciados pela rede do vírus.
Fig. 1. Banhista ocupa fragmento do território viral em La Grande-Motte (França). Fonte: Getty Images, 2020.
Acompanhamos também em vários países uma profunda disputa de narrativas sobre os impactos do vírus e as maneiras de gerir sua difusão com diversos tipos de medidas em termos de políticas públicas (ou de completa negligência, no caso do governo federal no Brasil), mas também com relação ao controle de territórios multiescalares. Em vários países, diferentes esferas de governo disputam sua autonomia sobre os espaços institucionalizados (em municípios, estados ou províncias, e no âmbito do próprio país), resultando, assim, em distintos arranjos sociotécnicos do novo coronavírus e, consequentemente, formações de territórios multifacetados. Em Madri, por exemplo, a imposição de medidas de restrição de circulação das pessoas, tem sido disputada entre o governo nacional (representado pelo ministério da saúde) e as autoridades regionais (que envolvia Madri e outros nove municípios vizinhos). Em setembro de 2020, diante de uma segunda onda de agravamento de contágio na Europa, o Tribunal Superior de Justiça de Madri decidiu em favor da região sob alegação que o governo não poderia interferir no direito fundamental de livre circulação dos cidadãos. Situações semelhantes têm acontecido em outros países e regiões. Está claro, em casos como este, o tensionamento provocado pelas redes do vírus na demarcação de limites tecnopolíticos e no exercício de poder em territórios sobrepostos.
É necessário também considerar as manifestações desiguais do território viral. Aplicar medidas de restrição no Leblon (Rio de Janeiro) ou nos Jardins (São Paulo) estabelece um território onde a concordância ou desobediência às regras que o constitui se dá em um contexto em que a maioria das pessoas vivem em situação de conforto e privilégio material, em apartamentos com vários cômodos, infraestrutura de comunicação e equipamentos em fartura, que tornam possível des-re-territorializações que potencializam a sobrevivência e diminuem riscos. Utilizar as mesmas restrições de circulação na Maré (Rio de Janeiro) ou em Paraisópolis (São Paulo) envolve condições de existência—redes de saneamento e mobilidade deficitárias ou inexistentes, situações precárias e instáveis de trabalho e habitação—que produzem des-re-territorializações limitadoras das possibilidades de sobrevivência, com maiores taxas de infectados e mortos.
O resultado é uma territorialidade seletiva e racista. O território viral dos negros e dos pobres é diferente do território viral dos brancos e dos ricos. Estudo recente do Instituto Polis[4] que analisou as mortes por Covid-19 por raça, gênero e distritos administrativos na cidade de São Paulo entre os meses de março e julho de 2020 corrobora essa interpretação. Quando comparada a mortalidade das populações branca e negra, os números são, respectivamente, 115 e 172 mortes por 100 mil habitantes. O estudo também apontou mortalidade muito superiores de mulheres negras quando comparada a mulheres brancas (140 e 85 a cada 100 mil habitantes, respectivamente), o mesmo ocorrendo entre homens negros e homens brancos (250 e 157 a cada 100 mil habitantes, respectivamente). Espacialmente, como se poderia esperar, os distritos administrativos mais vulneráveis (segundo o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social) são os mais afetados por maiores índices de mortalidade. Dados semelhantes são apresentados na sétima edição do “Mapa social do corona”[5], de autoria do Observatório das Favelas. Apesar da contaminação comunitária no Rio de Janeiro ter começado nos bairros de maior renda (zona sul), os maiores números de casos e mortes estão nas favelas e bairros mais periféricos, de menor renda. Enquanto a taxa de mortalidade média da cidade é de 5%, algumas favelas chegaram a apresentar taxas superiores a 25%.
Outra característica da seletividade do território viral se relaciona às próprias fronteiras dos países e regiões, com maior controle de acesso justificado pela contenção da contaminação. Quando o vírus começava a se espalhar pela Europa, em março de 2020, o ex-ministro do interior da extrema direita italiana, Matteo Salvini, pressionava o primeiro ministro a aumentar o controle de entrada de refugiados africanos, alegando medidas sanitárias[6]. Políticas de controle populacional tornam-se mais intensas em períodos de emergências sanitárias, sob o risco de resultarem mais vigilância e restrições contra grupos vulnerabilizados e marginalizados, reforçando as características racistas e discriminatórias dessas territorializações.
Parece óbvio, portanto, que definições de contenção, circulação, demarcações e acesso, determinam as diferentes possibilidades de configuração dos territórios do vírus. Neste sentido, em “Vigilância digital, hiperconexão e pandemia”, Fernanda Bruno [7] estabelece uma interessante conexão entre o cenário pandêmico atual e as origens da biopolítica em Foucault nos modelos disciplinares de exclusão (do leproso) e inclusão (do pestífero). As comparações com o que vivemos agora são óbvias, principalmente pelo controle pastoral e documental das possibilidades de contaminação da peste (inclusão). Segundo Bruno (2020: 3), o “controle da peste alimenta, segundo Foucault, um outro sonho: não o de purificação pela criação de um fora, mas o de ordenação pela a criação de um interior continuamente vigiado e controlado”. Mas as conexões de seu texto com o que estou tentando construir aqui sobre um possível território viral, está na proposta de um terceiro modelo (de controle biopolítico) de hiperconexão do infectado, em três camadas de manifestação. Lá, como aqui, essa distinção se aplica nos níveis de relação do vírus em seus arranjos sociotécnicos constituintes. Bruno trabalha a ideia de camadas, enquanto eu trato aqui de escalas territoriais. A primeira camada/escala é a planetária, a da grande geopolítica internacional. A segunda camada/escala corresponde às possibilidades de circulação nos diferentes arranjos territoriais virais, sob o controle de dados e a imposição de políticas restritivas. E a terceira camada/escala diz respeito às impossibilidades de circulação, pela reclusão em ambientes seguros (com as várias condições já citadas aqui) possibilitados (ou não) por infraestruturas digitais.
Apesar de todas as nuances e escalas discutidas aqui, considero aceitável pensar, epistemologicamente, em manifestações de uma territorialidade viral—formada, assim, por diferentes processos de des-re-territorializações—englobando desde suas origens na província chinesa às manifestações das tensões entre confinamento ou restrição de mobilidade, e reabertura de locais e atividades corriqueiras no restante do planeta, poucos meses depois das primeiras evidências sanitárias da existência do vírus. Com isso, tentei ensaiar, preliminarmente, considerações sobre territórios que desaparecem, se estabelecem ou se reconfiguram em momento pandêmico de profundas incertezas. Me parece legítimo poder continuar discutindo as características clássicas do conceito de território sob circunstâncias tão incomuns, a despeito das permanências e descontinuidades que possam envolver o, tão esperado, futuro da pós-pandemia.
Notas
1- Traduzido do original “you don’t make the timeline, the virus makes the timeline”, disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/25/politics/anthony-fauci-coronavirus-timeline-cnntv/index.html.
2- Ver: Bijker, Wiebe. (1997). Of bicycles, bakelites and bulbs: towards a theory of sociotechnical change. Cambridge: MIT Press.
3- Ver: Haesbaert, Rogério. (2007). Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, 9(17), p.19-46.
4- Ver “Raça e Covid no município de São Paulo”, julho de 2020, disponível em https://polis.org.br/estudos/raca-e-covid-no-msp/
5- Ver: http://of.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Mapa-Social-do-Corona-07.pdf.
7- Ver: Bruno, Fernanda (2020). Vigilância digital, hiperconexão e pandemia. In série Lavits_Covid-19, 14, 28/07/2020. Disponível em: https://lavits.org/lavits_covid19_14-vigilancia-digital-hiperconexao-e-pandemia/?lang=pt