Capítulo 3 – Wedge
Dando sequência à leitura de The Tuning of Place, o capítulo 3 fala sobre manipulações e intervenções que por vezes precisamos fazer tendo em vista situações e mecanismos. Coyne, seguindo sua linha de argumentação, procura pensar tais procedimentos ligados aos lugares.
O nome do capítulo, por sinal, é bastante sugestivo: Wedge, (“cunha” ou“calço” traduzindo o termo do inglês). A palavra expressa aquilo que é usado em ajustes gerais, referindo-se fisicamente a um objeto no formato de triângulo utilizado no encaixe entre objetos. O autor, entretanto, vai além do uso imediato do calço, buscando traçar analogias para com pequenas manipulações de dispositivos eletrônicos – Coyne, afinal, parte da premissa de que nosso ambiente está cheio de pequenos elementos para nossa intervenção sobre ele e sua posterior melhoria. A observação pontual sobre os lugares nos faz chegar à conclusão de que – ao modo como foi dito em momentos anteriores do livro – não há design/projeto perfeito ou acabado.
Parece que a harmonia, a ordem e a simetria dependem de ajustes apropriados, como se as coisas precisassem ser postas em alinhamento fora de uma posição inicial, o que é um desvio da norma [previamente estabelecida] ou do ideal (p. 49)
Calibrar, ajustar, configurar: praticamente tudo que fazemos precisa dessas ações. Não devemos entender, portanto, a cunha como apenas aquilo referente a mecanismos eletrônicos ou similares. Andar ou dançar, por exemplo, em diferentes superfícies demanda tal processo de constante adaptação.
A calibração é um caso especial de um processo que é ubíquo e constante tendo em vista as relações de organismos e humanos. Especialistas em cibernética explicam o implacável processo de calibração e recalibração em termos de loops de feedback. O organismo move-se em meio a seu ambiente, colega sinais que indicam alguma mudança e respondem com uma ação apropriada àquilo (p. 57-58)
Nesse sentido, buscando paralelos com os estudos desenvolvidos no GPC, é importante percebermos o constante (re)tuning como algo inerente à vida na cidade contemporânea (mas não só nesta!). Por mais bem planejado, por exemplo, que seja uma execução urbanística, nunca os procedimentos resultarão em projetos plenamente (bem) acabados. Há sempre o imprevisto e até o indesejado, e ambas as situações deixam marcas por meio de processos midiáticos que ora se situam nos lugares, ora versam sobre os lugares. O mesmo é válido para os desalinhamentos sociais, em geral descritos como “lacunas culturais” a serem devidamente preenchidas com educação – o que acaba sendo, não raro, um modo de padronizar modos de ser e de operar as demandas do dia a dia. Apesar do período histórico de democratização, iluminação, liberdade e industrialização que temos vivido há dois ou três séculos, parece bastante claro que
a era moderna também é marcada pela introdução de técnicas de regularização do corpo humano, dos seus movimentos, do seu comportamento, de sua vigilância, processos esses prontamente associados com a regulação social (p. 64)
O capítulo 3 acima descrito finaliza a parte tratada por “tempero”. O verbo em latim temperare, segundo o Dicionário Oxford, carrega consigo um sentido de combinação, regulação, divisão. A preocupação de Coyne, em toda esta primeira seção, está em traçar bases mais sólidas para pensar como dispositivos locativos podem ser utilizados para esse “tempero” ou ajuste dos lugares – bem como as formas pelas quais eles próprios podem ser apropriados e manipulados. Concluindo seu plano de observação, o autor traça uma série de diretrizes que podem auxiliar no projeto de mídias pervasivas. Dentre elas, vale a pena considerar os seguintes pontos: tornar a calibração tão fácil quanto imperceptível (como um simples ajuste automático de horário ou rede por parte dos celulares); as capacidades de ajuste devem estar alinhadas a modelos culturais apropriados, não o contrário (os modelos devem se adequar às circunstâncias, e não as pessoas devem se curvar diante das decisões de design); e as possibilidades de calibração podem favorecer a processos participativos ao modo visto na web 2.0, por exemplo.
Capítulo 4 – Habit
O capítulo 4, Hábito, abre a seção que trata sobre o cotidiano. Coyne nos mostra que o exame do dia a dia sugere tanto um imbricamento com as coisas banais da vida quanto a existência de um complexo conjunto de interconexões. Pensar o cotidiano põe em destaque não só os artefatos que nos cercam como também sublinha os contextos sociais, as práticas, as culturas. Pensar nesses pontos em termos de redes baseadas no lugar nos remete a uma apropriação tática dos mais diversos elementos que as compõem – desde os dispositivos (como celulares) até as funcionalidades embutidas neles (por exemplo, aplicativos).
Os objetos parecem migrar entre as condições do cotidiano e o mundo do espetáculo. É quando objetos incomuns são aceitos como normativos, tidos como certeiros, que eles mostram interessantes desafios psicológicos, sociais e políticos (p. 75)
A noção de hábito, assim, está impregnada ao cotidiano e ao uso do espaço. Habitar tem a ver com a permanência sobre o lugar, um residir naquele espaço – o que reflete também o senso de que as pessoas vestem o lugar que habitam. Entretanto, Coyne parece não se lembrar de povos nômades que, de alguma forma, não tomam espaço algum como hábito/vestimenta.
A partir da ideia de que hábito é algo que se adquire, Coyne realiza também uma digressão dentre questões territoriais e rítmicas (no sentido da repetição). Assim, a configuração e o perene ajuste dos lugares também têm a ver com as pequenas ações habituais que tomamos em relação a eles. Em termos de dispositivos eletrônicos, há uma série de medidas que tomamos: desligar o celular em determinados ambientes, colocá-lo em modo silencioso ou criar playlists de músicas são exemplos de suas incorporações em nosso cotidiano. Podemos dizer, pois, que o dispositivo “some” em nosso dia a dia. Resumidamente, sequer percebemos o quão estão presentes nas mais corriqueiras situações.
Coyne finaliza o capítulo tecendo algumas preocupações não tão importantes dentro de sua linha argumentativa, lembrando de como a repetição pode realçar problemas em relação a poder (socioeconômico) ou questões de pertencimento. São tópicos que, a princípio, parecem estar desalinhados com a proposta de discussão do livro. Um argumento, contudo, chama a atenção: como os dispositivos eletrônicos não devem (ou simplesmente não podem) ter plenos controles sobre nossa vida rotineira. O raciocínio do autor inicia-se com o relógio: este não regula a vida das pessoas, mas tão somente serve como um ponto de referência socialmente compartilhado, um lastro sobre o qual diversas convenções sociais são pautadas (como calendários e agendas). Bastante perspicaz, Coyne consegue perceber que o poder de mídias pervasivas não está em suas capacidades de se infiltrarem na vida cotidiana como seres onipotentes, mas sim como objetos de pontualização sob os quais subjazem determinadas práticas culturais.
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