O segundo livro discutido neste semestre pelo GPC consiste em uma coletânea de artigos editada por Ignacio Farias e Thomas Bender, que tem, como intuito, fazer um mapeamento de como a Teoria Ator-Rede vem sendo utilizada nos estudos de urbanismo.
FARIAS, Ignacio; BENDER, Thomas. Urban Assemblages: How Actor Network Theory changes Urban Studies. London: Routledge, 2010.
Abaixo resenha da Introdução, capítulo 2 e entrevista com Nigel Thrift por André Holanda.
Introdução
O projeto do livro está expresso no próprio título da introdução escrita por Ignácio farías. O descentramento do objeto dos estudos urbanísticos que a obra propõe adota a Teoria Ator-Rede como método de superação das velhas perspectivas redutoras. Para o autor, a cidade é feita da reunião de múltiplas redes e práticas heterogeneas.
Esta perspectiva recupera a postura de Gabriel Tarde e, portanto, entra em choque com o paradigma criado apartir das abordagens estruturais e marxistas.
Farías enumera os elementos principais da “caixa de ferramentas” da Teoria Ator-Rede.
Muito sumariamente a teoria é caracterizada como “uma certa sensibilidade para o papel ativo dos não-humanos na constituição do mundo, no sentido de uma constituição relacional dos objetos” cujo sentido pede “explicações simétricas” (p.3).
A bibliografia selecionada pelo autor para apresentar a TAR (Callon, 2001; Latour, 2005; Law e Hassard, 1999) apresenta três princípios centrais: a relacionalidade radical, a simetria generalizada e a associação. Actantes (humanos ou não) são mutuamente constitutivos e não pertencentes a domínios separados e incomensuráveis.
O conceito da “simetria generalizada” de Callon exige um repertório conceitual unificado para tratar de humanos e não-humanos, desta forma a compreensão da urbanidade precisa sofrer intensas transformações de modo a tornar-se uma descrição da cidade como mecanosfera, intimamente ligada à vida dos seres humanos que ajuda a constituir e dos quais recebe sua própria vida. Esta urbanização ciborque se comunica com o próprio imbricamento técnico-biológico que constitui o habitante humano desta ecologia política que é a cidade.
Tempo e espaço nesta perspectiva são efeitos das relações e associações que compõem a Rede de actantes. O livro busca mostrar que a cidade não existe em um espaço ou escala específicos, mas, ao invés, é série de “encenações” em múltiplos locais.
Este trabalho de descentramento deve superar três perspectivas “clássicas”, quais sejam: a cidade vista como forma espacial, como unidade econômica e, finalmente, como formação cultural.
Para a TAR, a ontologia da cidade caracteriza-se por três princípios. Em primeiro lugar, pelo seu posicionamento através da mobilização da rede de atores que a encenam, em segundo, por esta própria encenação e finalmente pela sua multiplicidade ontológica, não apenas no tocante à heterogeneidade da rede, mas igualmente pela associação entre entidades potenciais e atuais.
O autor resume da seguinte forma: “A cidade não é portanto uma realidade “lá fora”, mas é literalmente feita de composições urbanas, através das quais ela “vem a ser” de diversas formas” (p. 15) Vai além: “A cidade é portanto uma realização contingente, situada, parcial, e heterogênea: uma realização ontológica, realmente, já que envolve a encenação de um objeto de outra forma inexistente”. (id ibid)
Capítulo 2 – Globalization big and small
Notes on urban studies, Actor-Network Theory, and geographical scale.
O capítulo confronta duas visões do espaço social, de um lado, propõe-se um espaço nivelado, de outro, a geografia aborda-o com separado em escalas: regional, local, nacional e global. Nesta abordagem, os atores sociais seriam parcialmente definidos pelo acesso diferenciado a estas escalas. Consequência destas apreensões divergente do espaço é a existência de duas concepções igualmente divergentes da globalização. No primeiro caso a globalização é vista como resultado da dinâmica capitalista, no segundo como fenômeno sub-determinado que exige explicações mais complexas que uma mera determinação político-econômica.
O estudo apresentado no capítulo parte dos casos das maratonas modernas de Berlin, Nova Iorque e Londres. Estas maratonas caracterizam-se por serem grandes eventos de massa que renovam a experiência da vida nas cidades onde ocorrem. Para os autores este fato prova que “as cidades criam continuamente novas formas de vida coletiva, novos modos de viver juntos” (p. 55).
A seguir os autores comparam diversos esquemas heurísticos das hierarquias escalares da vida coletiva, a partir dos trabalhos de autores como Peter Taylor, Eric Swyngedouw, Neil Smith Neil Brenner, entre outros. A elemento comum é a apreensão do mundo como “organizado através de uma hierarquia de diferentes escalas espacias, cada uma das quais define de maneiras importantes a capacidade de agir de certos atores” (p. 59). Desta forma “a escala geográfica define uma série de linhas de força que estruturam o mundo de diversas maneiras desde a escala do corpo humano até o supra-regional e o globo” (id ibid).
Teria sido Fred Lebow quem transformou a maratona de um esporte restrito vivenciado fora dos espaços urbanos em um evento de massas, realizado através dos cenários das grandes metrópoles e como expressão de valores tipicamente associados a estas e ao mundo dos negócios que elas abrigam como o empreendedorismo, a competição e a superação.
Para os autores, estas competições deixam patentes certas insuficiências das hierarquias escalares. Em primeiro lugar por serem exemplos de padrões de organização que confundem ou escapam a estes esquemas de análise. Segundo, por evidenciarem que a análise escalar não descreve as transformações de escalas. O atores pode saltar de atores regionais a globais, ou curvar as escalas, o que seria inaceitável para a dita forma de análise (p. 64). Há ainda uma terceira crítica que ataca a submissão do local ao global. Para os autores melhor seria prestar atenção ao trabalho de manutenção e reparo constante exigido pelo nível local do que subsumí-lo à escala superior em cuja lógica estaria supostamente inserido.
Os autores guardam para o final um dos achados mais interessantes do trabalho, a compreensão das maratonas como máquinas geradoras de “afeto” (não necessariamente no sentido sentimental). Referem-se à criação coletiva e mútua de uma atmosfera “afetiva” pelos participantes e pelo público. Com base nesta proposta, o capítulo parece projetar um resgate do conceito de escala, desde que através de um “senso de escala” produzido justamente por esta ressonância local de que a relação entre espectadores e participantes da maratona urbana seria um exemplo.
Entrevista com Nigel Thrift
Em entrevista a Ignácio Farías, Thrift afirma seus pontos de vista frente a temas relativos às abordagens informadas pela TAR, discutindo questões como a contribuição de Gabriel Tarde, os limites da teoria, que ele crê mais produtiva em situação mais fortemente definidas e menos útil para questões onde, por exemplo, a dimensão psicológica esteja em jogo, dimensão que fazia parte das preocupações de Tarde.
Para Nigel Thrift as situações de forte oposição ou violência são parcialmente cobertas por Tarde e pela TAR, mas nenhuma destas concepções, segundo o entrevistado, consegue dar conta de todo o cenário.
A entrevista discute ainda a limitada capacidade do planejamento implicada na abordagem da cidade como virtualidade, no sentido de conjunto de potencialidades e tendências proposta pela obra do entrevistado. No entanto, apesar deste horizonte, Thrift reafirma a importância de formas de controle e planejamento, inclusive no sentido de agilizar a tomada de decisões que não podem beneficiar-se do processo de deliberação democrática.
Perguntado sobre a questão das escalas e outras formas de compreender a influência dos diversos exercícios de poder sobre as cidades, Thrift rejeita tanto a perspectiva escalar, que ele julga não fazer sentido, quanto a concepção do espaço como inteiramente nivelado. Inviáveis ambas estas linhas de análises, o autor está mais preocupado com as práticas definidoras de limites nas nossas sociedades.