Quando Naldo Benny lançou “Amor de Chocolate” em 2012, não imaginava cartografar as dobras do atual colonialismo de dados. O refrão ecoa como uma ironia nas infraestruturas precárias do Sul Global. NVIDIA e Oracle chegam com a vodca gelada, destilando promessas de poder computacional ilimitado em suas GPUs. Do outro lado, DeepSeek serve água de coco numa embalagem futurista — mais leve, mais eficiente e supostamente mais democrática. Mas será mesmo que tanto faz? Vodca e água de coco são servidas em copos que não nos pertencem, em bares onde somos apenas serventes dos dados que compõem tais dispositivos.
A disputa entre a chinesa DeepSeek e as estadunidenses NVIDIA, Oracle e OpenAI/Microsoft é mais que uma corrida tecnológica, ela é um espelho das contradições tecnopolíticas. Em poucos dias de janeiro de 2025 uma inteligência artificial provocou um desvio de mais de US$ 500 bilhões no mercado global de tecnologia. E o que isso realmente significa? A startup chinesa, construída por entre as brechas das sanções estadunidenses, é como um glitch que expõe narrativas novelescas sobre chips contrabandeados, hardware de segunda mão e código regurgitado.
Trocar a vodca premium da NVIDIA pela água de coco de baixo-custo da DeepSeek pode ser apenas uma mudança entre marcas de garrafas que nos embebedam. Confesso que os detalhes técnicos me escapam, mas o modelo Mixture of Experts da DeepSeek, que ativa seletivamente partes do algoritmo para cada consulta, me intriga. É como participar das festividades de ano novo do Universo Paralelo, transitando entre ritmos eletrônicos que vão de psytrance ao techno (sem passar pelo funk). Nesse caso, a festa em si é a dataficação da vida (Lemos, 2021) e nós somos os samples. Então precisamos entender o funcionamento íntimo dessas infraestruturas para criticá-las? Ou essa exigência é mais uma forma de nos manter sempre um passo atrás?
Em tempos os quais Trump anuncia parcerias bilionárias para infraestrutura, que parecem saídas de um universo paralelo, e a China oferece uma IA que roda até em equipamento desatualizado, deveríamos nos perguntar: onde os países do Sul Global se encaixam? De cara, a DeepSeek parece oferecer uma alternativa, ela soa como se o capitalismo de vigilância estivesse sob ameaça. Será que Naldo concorda? O performer que puxa nossa contradição tecnopolítica é famoso por suas fanfics com Kanye West e Kim Kardashian — ambos entusiastas de Trump, diga-se de passagem.
Tais fanfics não são tão diferentes das fantasias para a inclusão tecnológica. Performamos uma participação que só existe no registro da alucinação coletiva. Nos termos de Karen Barad (2007), mais que delírios, essas fanfics são manifestações materiais-discursivas da forma como o Sul Global revela e explora sua neocolonização. Amor de chocolate! Que metáfora deliciosa para o colonialismo de dados (ironia). Os algoritmos mais sofisticados do Vale do Silício e de Hangzhou se alimentam dos nossos dados como as chocolaterias suíças dependem do nosso cacau. Naldo deixa de ser apenas uma subcelebridade contando vantagem para tornar-se um elemento sociotécnico materializando ambiguidades no efervecer da inteligência artificial.
Lógico que queremos participar desse algoritmo, mas sempre acabamos no papel de fornecedores para produção do código alheio. Fazemos parte de uma economia política dos dados que faz o Sul Global salivar sem nunca degustar completamente. Assim como o cacau vira chocolate que poucos podem comprar, nossas experiências vividas são transformadas em dados brutos que, processados nas refinarias algorítmicas do Norte, retornam como estado da arte de todas essas IAs, que pagamos. Como no refrão de nossa canção-objeto, estamos sempre “em cima”, mas nunca no controle; somos operários da infraestrutura precária que sustenta o prazer digital alheio.
A escolha entre o modelo proprietário-extrativista do Vale do Silício e o tecno-autoritarismo “democratizado” de Hangzhou é uma não-escolha. Talvez nossa chance resida nas falibilidades constitutivas do sistema. Se outras IAs são possíveis, é porque o código também pode ser pirateado, hackeado, remixado. Ou seria apenas mais uma ilusão? Logo, nosso desafio está na criação de um coquetel molotov para uma resistência digital. E como fazê-lo quando os ingredientes, as receitas e até os copos parecem estar sempre nas mãos de outros? Permanecemos inacabados. Afinal, como afirma com energia nosso profeta involuntário, “eu já tô cheio de tesão” e às vezes basta o tesão para ser revolucionário.
BARAD, K. Meeting the Universe Halfway. Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning. Duke University Press, 2007. https://doi.org/10.2307/j.ctv12101zq
LEMOS, A. Dataficação da vida. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 21, n. 2, p. 193–202, maio 2021. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.2.39638
Alessandra Olinda é socióloga e jornalista, mestra em Comunicação e Práticas de Consumo, doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas no PósCom/Facom/UFBA e integrante do Lab404 – Laboratório de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço. Lembrou de Naldo Benny durante prática de tirocínio na disciplina COM104 (Comunicação e Tecnologia), quando estudantes da graduação discutiam política e internet pela interface das “políticas da tecnologia” e das “tecnologias políticas”. O texto foi produzido a partir de conversas com as aplicações de IA ChatGPT, DeepSeek e Claude.ai.
