Pensatas

Liberdade de Controle e o Destino Manifesto das Big Techs

Pensata 404 – Edição 02 – por Walmir Estima

Vamos perseguir o nosso Destino Manifesto até às estrelas, lançando astronautas americanos para fincar as estrelas e listras [da bandeira da América no planeta Marte.

Os dizeres acima são de Donald Trump, durante sua posse como 47º presidente dos Estados Unidos. Levado ao pé da letra, se enquadra como uma bravata típica de sua personalidade como político populista e nacionalista. Mas nas entrelinhas pode também revelar uma rede de relações históricas, conceituais, políticas, corporativas e tecnológicas na qual Donald Trump está imbricado.

Primeiro é necessário entender do que se trata o “Destino Manifesto”, e por que geralmente ele é escrito com iniciais maiusculas ao se transcrever o discurso de Trump. Trata-se de um conceito, uma teoria, que leva a uma prática política dos Estados Unidos na lida com o mundo, e, em grande medida, afeta a própria visão do povo norte-americano sobre o lugar da “América”[1] na Terra. Como tal, ele vem afetando a ação dos EUA na história desde sua fundação como país.

Nos primórdios foi usado como pretexto moral pelos colonizadores vindos da Inglaterra para expandir o território de povoamento branco, cristão, protestante, eliminando as populações originárias daquele território. Era o “Destino Manifesto” dos protestantes que saíram da Europa dividida por conflitos religiosos para professar e expandir livremente sua fé num território escolhido por Deus – a América. Uma missão divina, dada a um povo escolhido por Deus – o colono britânico protestante. E por isso eles podiam dominar o território e exterminar as populações originárias.

Como qualquer conceito, o Destino Manifesto se moldou ante os novos desenvolvimentos históricos, geopolíticos, econômicos e tecnológicos. Em mais de três séculos de história, o conceito passou a justificar desde o expansionismo do território estadunidense, já como nação independente no século XIX, até o enquadramento dos Estados Unidos como a nação responsável por espalhar a sua pretensa “liberdade” pelo mundo. Liberdade entre aspas, pois trata-se de uma ideia muito específica e contraditória de liberdade. A defesa do liberalismo econômico dos EUA ante a “ameaça comunista” soviética justificou o apoio a ditaduras sanguinárias e duradouras na América Latina. Por ironia do destino (manifesto), a “liberdade” espalhada pelos EUA por outras nações sempre favoreceu redes de circulação econômica, política, social e cultural que favoreceram e reafirmaram as posições de poder dos EUA.

Foi assim quando concomitantemente ao apoio da maioria das independências nas américas, os EUA colocaram em prática a Doutrina Monroe – que, em apertado resumo, é uma doutrina geopolítica que diz que nas américas (todas) o interesse dos EUA deve sempre prevalecer. Foi assim que, sendo os EUA o principal advogado da “liberdade econômica”  no mundo, resultou um sistema econômico financeiro mundial com o dólar estadunidense como moeda de troca univalente – dando ao país o poder unilateral de impor sanções comerciais a desafetos geopolíticos. E é assim quando Trump agora se une a Elon Musk, Meta, entre outros atores das gigantes de tecnologia dos EUA numa pretensa cruzada pela “Liberdade de Expressão”.

A aliança entre o trumpismo e as Big Techs, associada à defesa de um tipo de “Liberdade de Expressão”, poderia levar o “Destino Manifesto” dos EUA até Marte – mas dessa vez “até Marte” no sentido figurado e historicamente contextualizado, entendido como a expansão do exercício das redes de poder dos EUA a um nível jamais visto antes. Que liberdade de expressão é essa? Joel Kaplan, lobista republicano, apoiador ferrenho de Donald Trump  anunciado como novo diretor geral de políticas da Meta define bem o tipo de liberdade de expressão querido pelo trumpismo:

As plataformas da Meta foram criadas para serem espaços onde as pessoas possam se expressar livremente. Isso pode ser complicado. Em plataformas onde bilhões de pessoas têm voz, tudo o que é bom, ruim e desagradável fica exposto. Mas isso é liberdade de expressão.”[2]

A ideia de liberdade de expressão do Kaplan, como vista acima, parece estar ligada à ausência de regulação, ou seja: pode tudo. Não por acaso, a citação introduz o seu texto no site oficial da Meta que trata sobre o fim de várias regulações que a própria Meta tinha colocado sobre si: como a checagem de fatos e a proibição de certos discursos de ódio. Mas é um “tudo pode” que parte da ideia enganosa de que em plataformas como Instagram, Facebook ou X, tudo aquilo que é expressado, é distribuído de forma livre e igualitária. Como se tudo aquilo que ali se publica fosse um grito independente das redes tecnológicas em que está imbricado.

Já é quase conhecimento geral o fato de que tudo aquilo que é publicado em plataformas de redes sociais é distribuído por um algoritmo. O que talvez não seja um conhecimento tão generalizado assim é que o algoritmo, como sistema sociotécnico, trabalha não apenas para levar conteúdo “relevante” para os usuários. Mais do que isso, o algoritmo se enquadra como um ator essencial da rede de poder e fortuna que estas plataformas lideram. O papel de qualquer algoritmo é transformar dados em resultados. É uma inteligência artificial que age e faz agir. Em outras palavras: ao mostrar conteúdo ao usuário, o algoritmo não só descobre o que é relevante para ele com base na infinidade de dados que possui sobre o mesmo. Mais do que isso, ele tem o poder de, com base no agenciamento constante entre dados, usuários e plataforma, definir aquilo mesmo que é considerado “relevante”. E esta definição de relevância sempre obedecerá critérios específicos que visam alcançar determinados resultados. Resultados que são esperados pela rede de interesses políticos e econômicos da corporação da qual o algoritmo faz parte. O algoritmo define qual informação circula, como circula e para que circula.

Não existe “vácuo regulatório” em termos de plataformas digitais. Aquilo que não está sendo regulado por uma lei, por um governo, uma decisão judicial, está sendo regulado pela própria plataforma e seus sistemas de dataficação e processamento algorítmico. A liberdade de expressão defendida pelo trumpismo, entendida como ausência de qualquer controle externo sobre o que é publicado e distribuído nas redes sociais, é na verdade uma liberdade de controle. Liberdade para definir o que é relevante, mesmo que não seja verdade. É uma liberdade total para o controle algorítmico de conteúdo. Tal liberdade de expressão se alia ao “Destino Manifesto” dos EUA de forma a estender os braços do controle de sua mão invisível a qualquer país que tenha as redes sociais como atores centrais da vida pública. E é bem mais possível do que estender a “missão divina” até Marte.

Walmir Estima, pesquisador do Lab 404. É jurista, especialista em relações internacionais, mestre e doutorando em comunicação e cultura contemporâneas.


[1] Este autor entende que América é o continente que engloba Norte, Centro e Sul. Aí está escrito entre aspas para representar a visão estadunidense de que a “América” é os EUA.

[2] https://about.fb.com/news/2025/01/meta-more-speech-fewer-mistakes/?utm_source=meio&utm_medium=email