Pensatas

A era trump e o negacionismo tecnoregulatório

Passou na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos uma emenda que literalmente proíbe por 10 anos qualquer tipo de regulação de IA pelos estados. Isso se soma a outras três notícias do início deste ano, aparentemente sem relação entre si, mas que revelam um desafio urgente para todos que desejam uma internet mais segura, igualitária e democrática: chamarei este desafio de negacionismo tecnoregulatório. A primeira notícia é que os Estados Unidos, sob o governo Donald Trump, se recusaram a assinar uma declaração internacional pelo desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial que sejam “éticas”, “abertas”, e “inclusivas”.

A segunda, é que a Alphabet, empresa controladora do Google, desfez a sua promessa de não desenvolver tecnologias de IA capazes de criar “danos coletivos”, como IAs para armas destruição e vigilância em massa. E a terceira é que Elon Musk, no uso das atribuições que seu novo cargo no governo dos EUA lhe confere, cortou o financiamento do Escritório de Proteção Financeira e do Consumidor (CFPB na sigla em inglês) – agência do governo norte-americano que teria capacidade de fiscalizar e regular o X ante os novos objetivos de Musk de transformar a rede social em uma plataforma integrada de transações financeiras.

Os fatos acima são reveladores da aliança explícita entre o governo Trump e as gigantes de tecnologia dos EUA – aliança esta que parece beneficiar estas últimas, dentre outras maneiras, ao criar um suporte institucional-político-ideológico contra qualquer tipo de regulação democrática das tecnologias digitais. É o negacionismo tecnoregulatório.

O termo negacionismo tem sido usado para descrever a atitude – comum à extrema-direita – de desacreditar realidades que põem em risco toda a humanidade (especialmente os grupos mais vulneráveis), com o objetivo de impedir ações políticas concretas que minimizem ou impeçam os danos – mas que também vão de encontro a interesses político-econômicos específicos. É o caso do negacionismo climático, que fez Trump sair do acordo de Paris pela segunda vez. E o negacionismo sanitário, que fez políticos de extrema-direita ao redor do mundo (inclusive Bolsonaro, no Brasil) se oporem às medidas protetivas na pandemia de Covid-19. O próprio Trump, seguido por Javier Milei (da extrema-direita argentina), saiu da Organização Mundial de Saúde (OMS) – órgão que ganhou protagonismo na definição de medidas sanitárias durante a pandemia.

O novo negacionismo tecnoregulatório trabalha para desacreditar a constatação de que os desenvolvimentos tecnológicos atuais trazem consigo riscos para a humanidade, para as democracias, para as classes menos favorecidas e para as minorias étnicas e identitárias. As redes socioeconômicas, ideológicas e políticas que fazem esta negativa persistente de lidar com a realidade de maneira ética, responsável e sustentável podem ser reveladas pela análise da associação entre três fatores preexistentes: o solucionismo tecnológico, o tech backlash e a disputa geopolítica entre EUA e China. Falarei um pouco de cada um deles.

“Para salvar tudo, clique aqui”, é o título do artigo de Evgeny Morozov, pesquisador bielorusso que popularizou o termo “solucionismo tecnológico”. Ele trata da crença imbricada na sociedade contemporânea, pela qual o desenvolvimento tecnológico, por meio da inovação constante e conectividade digital generalizada, seria sempre a solução para os problemas que afligem os humanos. Isto seria parte de uma propaganda ideológica que ajudou na expansão acrítica das lógicas econômicas e mercadológicas que alimentam as gigantes de tecnologia.

O solucionismo tecnológico é um pressuposto retórico da lógica mais ampla de plataformização que, vulgarmente falando, seria o processo pelo qual tudo na vida é resolvido por um aplicativo disponível num smartphone. Reescreveria o título do citado artigo de Morozov assim: para salvar tudo, use este dispositivo móvel e baixe este app.

(Aplicativo + smartphone)

É esta a associação mais visível aos nossos olhos do processo que fez a humanidade ficar cada vez mais imbricada em sistemas sociotécnicos que produzem dados digitais que alimentam algoritmos de inteligência artificial e fluem sempre na direção dos servidores de um mesmo grupo pequeno de empresas de tecnologia: as gigantes do acrônimo GAFAM (Google, Alphabet, Facebook, Amazon e Microsoft).

Estas corporações compõem uma teia mais ampla de infraestruturas, políticas, retóricas, interfaces, termos de uso, entre outros atores, que ao mesmo tempo em que incentivam, se alimentam de uma realidade básica: a circulação de dados digitais. Tais dados são o principal motor de mais inovação, imbricando mais tecnologias no mundo social, que produz mais dados e assim por diante…

Já o termo “tech backlash” ou “big-tech backlash” foi popularizado pelo jornalismo especializado para definir a ascensão de um senso crítico maior ao processo descrito anteriormente. Desde meados de 2016 surgiram casos como o da Cambridge Analytica, esquemas de desinformação, polarização e ataques à democracia. Além disso, críticas a questões de privacidade, vigilância e trabalho precário mediados pela economia de plataformas digitais começaram a circular na sociedade. Esta “virada de chave” em parte relevante e influente de setores da sociedade no modo de ver as tecnologias digitais, levou a pressões institucionais para regular as plataformas digitais e as realidades mediadas pelas mesmas (trabalho, produção de conteúdo, distribuição de informação, comércio etc.). É isto que se convencionou chamar de tech backlash. Não é a antítese do solucionismo tecnológico, mas sua ressignificação ativa. Eu diria que a própria popularização da obra de Morozov faz parte das forças em associação no tech backlash. Isto fez as principais empresas de plataformas entrarem em posição de batalha para parar com a expansão de arcabouços regulatórios que limitassem seus modelos de negócio.

Para não perder o fio da meada entre ataques e contra-ataques, já posso afirmar que o negacionismo tecnoregulatório seria a busca por desconstrução ativa do tech backlashNão apenas desconstrução em termos retóricos, mas em termos institucionalmente sensíveis: como o desmonte de agências fiscalizatórias, a saída de acordos regulatórios e o bloqueio de novas regulações. Para isso, é necessário uma influência forte nas instituições de Estado, especialmente daquelas com maior poder fiscalizatório sobre as principais gigantes de tecnologia: o governo dos EUA.

É aí que entra o terceiro nó de relevância para compreender esta rede: a disputa geopolítica entre EUA e China. Este desafio para os EUA supera e precede os quereres da administração Trump. É a disputa geopolítica de nossa era, revelada  pelo primeiro discurso de Anthony Blinken como Secretário de Estado do governo Joe Biden em 03/03/2021, quando expressou:

(..) A China é o único país com o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para desafiar seriamente um sistema internacional estável e aberto – todas as regras, valores e relações que fazem o mundo funcionar da forma que queremos, porque isso em última instância serve aos interesses que refletem os valores do povo americano.

Sem entrar no mérito do discurso, visto que os próprios EUA têm representado serias ameaças à estabilidade e abertura do sistema internacional, o que ele revela é que a disputa de influência econômica, diplomática, militar e tecnológica entre EUA e China é uma realidadeséria para eles. E que eles estão dispostos a mobilizar recursos e energia política nesta disputa. A retórica da administração Trump contra a China é ainda mais radical. Nessa disputa, a corrida pelo desenvolvimento de inteligências artificiais mais eficientes é um campo de batalha essencial. Corneliu Bjola, professor de estudos diplomáticos da Universidade de Oxford, afirma que a revolução digital em andamento altera profundamente todas as dimensões da política internacional. Para ele, a habilidade de atores estatais e não-estatais de empregar métodos digitais de produção e análise de dados para prever e gerar eventos é de tanta relevância estratégica como o poderio militar. Vladimir Putin, em 2017, disse que aqueles que se tornarem líder no campo da inteligência artificial se tornarão os “governadores do mundo”.

Ao tratar da não-assinatura do acordo sobre IA em Paris, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, disse aos delegados que um excesso de regulamentação da IA poderia “matar uma indústria transformadora justamente quando ela está decolando”. Esta ideia de que “a regulação atrasa a inovação” é central do argumento do negacionismo tecnoregulatório. E se a inovação é um imperativo geopolítico estratégico na disputa com a China, o argumento torna-se ainda mais forte. Se a regulação de IA atrasa a inovação, a regulação de IA é uma ameaça na disputa com a China. A moratória de 10 anos para regulação de IA é o resultado político-institucional mais forte do negacionismo tecnoregulatório até o momento.

Importante salientar, que o adjetivo tecnoregulatório enfatiza não apenas o fato de que é um negacionismo que busca negar as regulações democráticas, mas inclui a defesa de outro tipo de regulaçãoO adjetivo democráticas é necessário, pois é precisamente este o tipo de regulação que se busca evitar. Pois aquilo que não é regulado por lei, está sendo disciplinado pelas lógicas embutidas nas tecnologias. Um dos principais poderes das plataformas digitais está em sua capacidade de passar a mediar amplos setores da sociedade até que regular seus efeitos seja um desafio com custos sociais e políticos impossíveis de serem ignorados. Mas enquanto os efeitos não são regulados, seus termos de uso, interfaces, políticas de privacidade, modelos de negócio e algoritmos regulam a sociedade em sentido amplo. As tecnologias e corporações redefinem as lógicas socioeconômicas em busca da reprodução de suas lógicas mercantis. A busca por evitar regulação, de forma contraditória, é uma corrida sobre quem (ou o que) vai exercer maior poder regulatório sobre o mundo: se é a sociedade ou se são os oligopólios de tecnologia.

Walmir Estima – pesquisador do Lab 404 – é especialista em Relações Internacionais, mestre e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas.