Pensatas

Mark Zuckerberg e os pronomes dos algoritmos da Meta

Pensata 404 – Edição 01 – por Flávia Sofia

Controvérsias de gênero ao redor da marca Meta parecem justamente fazer parte de um arcabouço de ações que marcam um novo posicionamento empresarial, mas camuflam dinâmicas materiais, em especial as algorítmicas, e sua relação fundamental com o que chamamos de política na atualidade. 

O Vale do Silício já não é mais o mesmo. Se no início dos anos 2000, as imagens das empresas descoladas e coloridas – com suas paredes transparentes, sala de jogos e máquinas de refrigerantes, chamavam a atenção dos aspirantes em carreiras no ramo da tecnologia -, hoje um dos maiores representantes dessa cultura está praticamente mandando recolher os pufs e pintar as paredes de cinza. Mark Zuckerberg parece estar muito preocupado com o apagamento da diversidade e com a afirmação da masculinidade dos seus algoritmos. Mas é possível que linhas de código tenham gênero?

Em apenas uma semana, depois de anunciar o fim das iniciativas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) no Facebook, Mark Zuckerberg também alterou suas políticas de discurso de ódio, onde agora passa a ser permitido que, por exemplo, termos referentes a doenças mentais sejam associados a gênero ou orientação sexual. Para coroar o reposicionamento de marca, o executivo terminou a semana participando do podcast de Joe Rogan por três longas horas, onde afirmou que o mundo corporativo precisa de mais “energia masculina”, comparando-a à disciplina das artes marciais.

“Muita coisa na nossa sociedade se tornou muito… neutra ou emasculada,” disse Zuckerberg, antes de mencionar que, sim, ele tem irmãs e filhas, tentando afastar qualquer suspeita de que suas declarações poderiam ter raízes no sexismo.

Muito longe do tom de “mera opinião” de Zuckerberg, a opacidade dos sistemas algorítmicos que ele comanda tem mascarado mecanismos de poder que produzem ativamente desigualdades. Como observa Tarcísio Silva (2019) em seus estudos sobre racismo codificado na inteligência artificial, sistemas preditivos baseados e realimentados a partir de conjuntos de dados vêm refletindo histórias de opressão e de violência contra grupos vulnerabilizados. Essas infraestruturas digitais são “caixas pretas” que carregam vieses estruturais. Os algoritmos da Meta, majoritariamente desenvolvidos por homens brancos do norte global, inscrevem vieses de gênero na própria arquitetura tecnológica.

André Lemos (s.d), em ensaio ainda não publicado, a partir da Ontologia Orientada e Objeto (OOO) de Harman, e da Teoria Ator-Rede de Latour, opina que a associação analítica entre gênero e objetos é espinhosa justamente porque “gênero” é uma categoria ligada à identidade e a uma dimensão política. A um primeiro olhar (antropocêntrico) objetos não poderiam possuir gênero.

Para escapar da cilada analítica, citando Harman e sua OOO, explica que os objetos têm dimensões (relativas à matéria – undermining, e também relativas às suas relações – overmining), mas que não podem ser definidos por essas dimensões.

Citando Latour, Lemos reconhece também a ação dos objetos, só que sempre pelas relações que estabelecem. Seja por onde for, o autor não considera objetos apenas por sua composição físico-química, e também não os entende como seres encantados que agem metafisicamente: objetos se   engajam   em   organizações   com agenciamentos específicos, suas relações e entrelaçamentos.

Pensando no gênero dos algoritmos, em sua perspectiva undermining, ainda que os códigos da Meta em sua composição não sejam criados “para o sexo” (sex-driven objects), são intermediary objects em um sentido Lemosiano, eles vêm aos poucos ganhando   suas   particularidades, transformando-se   em   mediadores importantes no entrelaçamento com outros objetos, humanos e instituições (fomentando questões de gênero).

Ou seja, algoritmos adquirem identidades de gêneros quando de fato existem nas relações. Eles produzem/absorvem/induzem questões político-identitárias de gêneros, pois imbricam-se e constroem identidades, produzindo vieses e politização.   Lemos chama   essa   categoria   de  “dimensão   overmining   de   gênero”,   “objetos dirigidos a gêneros” (gender-driven objects).

“Os objetos não podem ser pensados só em termos de endereçamento a um sexo específico, mas na forma como ajudam a construir, a partir   de   múltiplos   agenciamentos, identidades   e   construção   de   corpos,  reforçando estereótipos e se colocando como agentes políticos”, explica.

Sobre a Meta de Zuckerberg, contradições de gênero são evidentes quando, por exemplo: o mesmo sistema que hipersexualiza corpos femininos no Instagram censura conteúdos sobre experiências como o parto natural.

A novidade é que Zuckerberg agora dá sinais de irritação diante da mediação central de seus algoritmos nas mudanças políticas vivenciadas por minorias sociais neste século, em especial na busca por equidade. Assim como nos debates raciais – com a ascensão de discursos e práticas de empoderamento coletivo a partir de plataformas -, a população e o ativismo LGBTQIAPN+ montaram seus dispositivos para a disputa política contra opressões muito em associação com esses conjuntos de códigos.

Por isso a mudança nas “Notas de Comunidade” e a liberação para associar termos LGBTQIA+ a doenças mentais não são apenas decisões linguísticas, mas intervenções materiais que reconfiguram as possibilidades de existência de corpos dissidentes. Conteúdos, portanto, não são meros produtos que são consumidos nessas redes sociais de acordo com gostos pessoais, mas são “coisas” que possuem performatividade, ou seja, produzem a política e uma pulsão de ação no mundo, sempre em relações complexas, que envolvem objetos e pessoas.

É por isso que o arroxo e a radicalização discursiva de Mark Zuckerberg, em um alinhamento claro com as direitas políticas mundiais, e a sua defesa da “energia masculina”, não vêm também sem alterações claras nas documentações das plataformas e em suas linhas de código.

Como homem branco heterossexual, Zuckerberg é uma versão de “tubarão” do século XXI, que encontrou uma maneira de atualizar lógicas opressivas históricas com a manutenção do status quo em benefício próprio. É mais do mesmo. É uma roupagem do que Aza Njeri chama de “o senhor do ocidente”, ao se referir ao padrão de ser humano que acumula todos os privilégios possíveis e toma as decisões em sociedades ocidentais (e também nas historicamente colonizadas).

Mas agora a dataficação da política a partir da performance desse aparato tecnológico atual, altamente dependente de algoritmos, transforma discursos de ódio em dados, que são insumos para análises de comportamento extremamente capazes de predizer tendências e produzir a realidade em prol do consumo. Dizer indiretamente que os pronomes dos algoritmos da Meta são “Ele/dele” é, acima de tudo, lucrativo.

É ou não é o modelo de negócios de todos os séculos ficar cada dia mais rico à base do ego masculino branco?


REFERÊNCIAS

LEMOS, André. Gênero dos objetos: o caso dos Smart Speakers. [Inédito]. [s.d.].

NJERI, Aza. Amor: um ato político-poético. In: CORREA, Diogo Silva; SANTOS, Franciele Monique Scopetc dos (Org.). Ética e filosofia: gênero, raça e diversidade cultural. São Carlos: Editora Fi, 2020. p. [indicar páginas]. ISBN 978-85-5696-809-8. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/347523717_Etica_e_filosofia_genero_raca_e_diversidade_cultural . Acesso em: 11 fev. 2025.

SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico em plataformas digitais: microagressões e discriminação em código. In: VI SIMPÓSIO INTERNACIONAL LAVITS, 2019, Salvador. Assimetrias e (in)visibilidades: vigilância, gênero e raça. [S.l.: s.n.], 2019.