As imagens são sedutoras: sorrisos, cifras, links, promessas. Influencers comemoram vitórias em sites de apostas com a leveza de quem compartilha uma dica de moda ou uma nova série. Mas por trás desse tom casual — muitas vezes embalado em vídeos curtos e virais — há uma engrenagem mais complexa em funcionamento. A CPI das bets, instaurada no Senado, tenta puxar esse fio: como influenciadores digitais vêm promovendo plataformas de jogos de azar que têm impacto direto na vida (e no bolso) de milhões de brasileiros.
O interesse popular por essa investigação ganhou novo fôlego após o depoimento de Virginia Fonseca à comissão parlamentar de inquérito em questão. A influenciadora, que acumula mais de 53 milhões de seguidores no Instagram (número superior à população somada da Austrália, Grécia, Portugal e Irlanda, segundo cálculo da jornalista Rosana Hermann), foi convocada por ter divulgado uma casa de apostas em seu perfil. Durante seu depoimento, afirmou que não sabia que a empresa atuava de forma irregular e alegou que a responsabilidade contratual era da sua agência.
Esse episódio escancara o alcance exponencial dos influenciadores e evidencia como o marketing das bets se infiltrou nos circuitos mais visíveis da cultura digital. Mas a questão não se resolve apenas na legalidade da publicidade. O que está em jogo envolve formas de circulação de afetos, modelos de subjetivação e estratégias técnicas de captura do desejo. Um olhar atento à materialidade das redes e às forças que atravessam a cultura digital permite perceber camadas menos visíveis desse fenômeno.
Em vez de tratá-los apenas como culpados ou inocentes, podemos ver os influenciadores como pontos de conexão em sistemas complexos. Eles fazem parte de agenciamentos maquínicos, como propõem Deleuze e Guattari (2011), em que corpos, algoritmos, plataformas, imagens e fluxos financeiros operam juntos na produção de modos de vida[1]. A subjetividade, nesse contexto, não é uma essência individual, mas algo que se forma a partir desses atravessamentos. Um efeito desses circuitos técnicos e afetivos. Suas postagens ativam desejos, alimentam fantasias, dão forma a uma ideia de sucesso que mistura ascensão social, ostentação e sorte.
Nesse circuito, o que se compartilha não é só informação. São afetos. E o afeto tem uma potência que escapa à linguagem (Massumi, 2002). Ele atravessa o corpo antes mesmo de se traduzir em pensamento. O clique na bet não acontece por convencimento racional. Ele surge como resposta a um clima de excitação, muitas vezes encenado em vídeos rápidos que prometem ganhos fáceis e imediatos. Esse ambiente de circulação é moldado por sistemas automatizados que priorizam o que engaja, o que emociona, o que promete. Plataformas como YouTube, TikTok e Instagram ajustam seus algoritmos de forma contínua, favorecendo aquilo que gera mais resposta emocional. A viralização se torna um efeito colateral calculado. Quanto mais afeto, mais visibilidade. E quanto mais visibilidade, maior a chance de repetição.
O caso das apostas escancara uma lógica mais ampla: um novo regime de financiamento da influência nas redes. Nele, a produção de conteúdo se entrelaça à captura algorítmica do desejo e à monetização de afetos em larga escala. Não se trata apenas de divulgar produtos, mas de sustentar sistemas inteiros de visibilidade, engajamento e consumo.
Esses algoritmos não são apenas ferramentas técnicas, como já discuti numa pensata anterior. Eles funcionam como infraestruturas de poder, com efeitos concretos sobre o que a gente pode ver, sentir e desejar. Cada toque na tela, cada curtida, cada pausa no vídeo alimenta um sistema que aprende em tempo real. Esta é a lógica da For You, do TikTok, por exemplo. E esse aprendizado afeta diretamente o que circula, o que viraliza e o que se torna comportamento comum.
As plataformas de apostas, nesse contexto, operam como máquinas desejantes (Deleuze; Guatari, 1976). Elas capturam a imagem do sucesso que por muitas vezes é encarnada por influenciadores que performam vitórias e estilo de vida e, então redistribuem essa imagem como promessa acessível. O jogo se infiltra no cotidiano, aparece em meio a conteúdos de entretenimento e passa a ser visto como uma escolha banal, quase inevitável. O “disclaimer” é protocolar. Quase ninguém realmente se atenta para a tal dica de jogar com responsabilidade. Ele funciona mais como imunização simbólica do que como instrumento real de prevenção.
Responsabilizar os influenciadores é necessário, mas não é suficiente. A CPI ilumina parte do problema, mas não dá conta da complexidade envolvida. A responsabilização tende a concentrar a culpa em indivíduos, desconsiderando os arranjos institucionais e tecnológicos que os atravessam. Quando Virginia transfere a responsabilidade à sua agência, não está apenas se esquivando. Está revelando como essa cadeia de ação é distribuída, difusa, e própria de todo agenciamento maquínico.
Além disso, cabe lembrar que o próprio Estado, ao mesmo tempo em que investiga os efeitos dessas práticas, também tem sido omisso ou permissivo na regulação da publicidade digital e da indústria de apostas. O problema é estrutural, e não episódico. O que está em curso é um ecossistema técnico e afetivo que articula visibilidade, desejo e risco dentro de lógicas cada vez mais sofisticadas de monetização da atenção.
Se antes o jogo era escondido em ambientes discretos e marginalizados, hoje ele aparece entre stories, sorteios e danças virais. Apostar virou conteúdo. O feed virou cassino. E a subjetividade, essa sim, está em jogo.
Atualizações:
- No final de maio, o Plenário aprovou um conjunto de regras indicadas pela Comissão de Esportes. Dentre elas, a proibição de influenciadores em publicidades de apostas de quotas fixas (um tipo de bet);
- Em 10/06 foi entregue o relatório final da CPI das bets que, entre outros pontos, pedia pelo indiciamento de Virgínia Fonseca por estelionato. O documento foi rejeitado pelo Senado – o primeiro relatório de CPI rejeitado em 10 anos – e, desde então, seus relatores trabalham na contra argumentação.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 2. São Paulo: Ed. 34, 2011.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
MASSUMI, Brian. Parables for the virtual:
movement, affect, sensation. London: Duke University Press, 2002.
[1] Os autores descrevem os agenciamentos maquínico como sistemas heterogêneos de elementos humanos e não-humanos (corpos, objetos, ideias, máquinas), que se articulam para produzir algo (ações, afetos, fluxos). Influencers + plataformas + desejo + aposta = agenciamento maquínico.
