Pensatas

Objetos em resistência: Fadiga digital e materialidades alternativas

Pensata 404 – Edição 10 – por Dalvacir Andrade

Nossas pensatas são discutidas no Lab 404, mas refletem a opinião pessoal.


Era quase meia-noite de uma sexta-feira, em abril de 2025, quando eu e meu filho revirávamos uma dessas gavetas onde se misturam documentos vencidos, manuais de eletrodomésticos esquecidos e objetos sem nome. Estávamos em busca de uma câmera digital Nikon, comprada entre 2010 e 2015, que não via a luz do dia desde, talvez, 2017. Um objeto esquecido, como tantos outros que perdem lugar na casa e na vida à medida que o novo se impõe. Mas naquela noite, a câmera obsoleta voltava a ser desejada.

Eu tinha lido numa matéria que as câmeras digitais antigas, como Cyber-shot da Sony, a Nikon Coolpix e a Canon PowerShot, estavam de volta, sendo muito valorizadas pela Geração Z. Perguntei ao meu filho de 16 anos se ele conhecia essa tendência. Eu queria entender por que alguém tão jovem se interessaria por um dispositivo antigo, com tela pequena, sem wi-fi e imagens longe da perfeição hipernítida dos celulares atuais.

Ele, nascido num mundo onde os smartphones já eram objetos comuns no cotidiano, respondeu com simplicidade: “As fotos dessas câmeras parecem mais verdadeiras”. Lembrei que tínhamos uma delas guardada há anos, e ele quis resgatá-la na hora. A câmera velha, com a bateria esgotada e sem cabo para carregar, virou naquele momento um elo entre gerações, um gatilho de conversas e afetos, um pequeno agente de transformação doméstica.

A frase dele ficou ressoando em mim: parecem mais verdadeiras. O que significa, hoje, querer algo que pareça mais verdadeiro? Por que jovens, chamados “nativos digitais”, procuram dispositivos com telas pequenas, sem wi-fi, com pixels borrados? Que forças transformam esses objetos obsoletos em desejo renovado?

Essa cena doméstica, tão banal, de repente, passou a reverberar em mim como parte de algo maior: o sintoma coletivo da fadiga digital. Em 2023, o termo “brain rot”, que numa tradução livre significa “cérebro podre”, ganhou força no TikTok, descrevendo a sensação de exaustão mental, dificuldade de foco e o cansaço diante de conteúdos infinitos. Em 2024, foi eleito palavra do ano pelo dicionário Oxford. Surgiu de forma irônica, mas acabou capturando um mal-estar mais amplo, experimentado tanto por adolescentes quanto por quem passa horas no feed.

Não por acaso, estudos e reportagens têm apontado a queda no engajamento em redes sociais, o aumento nas buscas por apps de foco e bloqueio de notificações, o interesse por experiências offline como clubes sem celular. São sinais que sugerem cansaço e desconfiança em relação ao ritmo frenético, à vigilância constante e à estética polida que domina o digital.

Procurar uma câmera digital antiga numa gaveta pode ser um gesto pequeno, fruto de mais uma tendência. Mas me parece também um sinal de algo mais profundo, relativo ao desejo por ruído, atraso, imperfeição. Uma vontade de escapar da lógica algorítmica que escolhe o melhor ângulo, a luz ideal, a vida editada. Uma vontade de recuperar o tempo, o erro, o gesto humano. Talvez seja mesmo um sinal de nostalgia do real. Não como desejo de voltar ao passado, mas como esforço de habitar o presente de outro modo.

De fato, a fadiga digital deixou de ser uma queixa isolada para se tornar quase um traço geracional. Entretanto, não importa se você cresceu com um smartphone nas mãos ou se aprendeu a usá-lo depois da vida adulta: em algum momento, a sensação de saturação aparece. Um cansaço que não vem só do excesso de estímulos, mas também da homogeneidade. O feed se apresenta como sempre novo, mas é previsível, modelado, sem surpresa real. Tudo parece igual: os vídeos, os reels, as legendas, os filtros.

É nesse contexto que voltam a ganhar espaço práticas e objetos que pareciam ter ficado de lado. Câmeras antigas, celulares com teclas e sem apps(dumbphones), vinis, jogos de tabuleiro. Eles nunca desapareceram por completo, mas foram relegados a cantos menos visíveis. Agora retornam como alternativas para quem busca o que faltava: lentidão, atrito, contato físico.

Esses movimentos ensaiam outras formas de viver com a tecnologia, sem rejeitá-la por completo. São tentativas de criar pausas e brechas no fluxo constante. Uma recusa parcial à fluidez total, por meio de objetos que funcionam como dispositivos de desaceleração. Pequenos arranjos que devolvem ao corpo e ao tempo uma espessura que se perde no scroll infinito.

Ao escolher uma câmera antiga, frequentar um clube offline ou usar um app para bloquear notificações, as pessoas tentam reorganizar sua relação com o presente. Criam zonas de lentidão dentro de um ecossistema orientado para a velocidade e a atualização constante. São dispositivos comunicacionais que criam circunstâncias para encontros, afetos e experiências menos formatadas pela “performatividade algorítmica” (Lemos, 2021).

Como propõe Bennett (2010), os objetos possuem uma vitalidade própria, capaz de agir, afetar e reorganizar relações. A câmera antiga esquecida numa gaveta se reativa quando volta a circular. Ela reorganiza o tempo da captura fotográfica enquanto convoca conversas, negociações, pausas. Como diria Bennett, é matéria vibrante, não passiva, mas coautora de mundos.

Latour (1994) lembra que os objetos têm agência ao participar das redes de ação. Retirar a câmera da gaveta seria como abrir a caixa-preta, evidenciando os elementos internos que intervêm e reorganizam gestos ao mesmo tempo em que fabricam outros ritmos, contatos e conexões.

Essas ações podem ser lidas como gestos de performatividade material – aquilo que Gamble, Hanan e Nail (2019) chamam de movimento improvisado, pedético, que não está totalmente pré-determinado. O clique atrasado, o flash estourado, a falha na composição não são defeitos a corrigir, mas acontecimentos quereconfiguram a relação com o tempo e com o outro. Eles introduzem atraso, ruído, diferença.

Além disso, essas práticas rearranjam corpos, olhares, conversas e afetos. São formas de relacionalidade que tornam possível experimentar outros modos de estar junto, menos previsíveis, mais situados, mais sensíveis ao improviso e à presença. Em vez de impor um fluxo contínuo e controlado, abrem espaço para o incerto, para o contato, para a criação compartilhada do momento. Em vez de otimizar a imagem, deixa que ela falhe. Em vez de corrigir o erro, acolhe-o, introduzindo-o como parte da verdade do que se mostra e se compartilha.

Certamente nada disso é novo. Em cada época, as pessoas buscam maneiras de resistir ao que as sufoca, de criar zonas de respiro. Hoje, porém, essa busca tem contornos específicos. Queremos pausas em um mundo que promete conexão infinita. Queremos fricção onde nos venderam fluidez. Queremos ruído onde o algoritmo busca silêncio e previsibilidade.

A fadiga digital revela o mal-estar de viver num ecossistema que transforma cada instante em oportunidade de captura, cada gesto em dado, cada imagem em performance. Diante disso, não surpreende que surjam movimentos para reconfigurar o tempo, o olhar, o corpo. São maneiras de dizer que não aceitamos viver só no fluxo contínuo das atualizações do feed, são formas de experimentar outras temporalidades, outros modos de presença. Tais ações não pretendem fundar uma utopia sem tecnologia, mas testar limites, abrir fendas, sugerir que há sempre outro jeito.

Nisso reside sua força: lembrar que a vida também acontece no atraso de um clique, no barulho de um botão físico, no silêncio entre frases ditas cara a cara. Em um mundo saturado de estímulos, qualquer gesto que recupera o fora do tempo, como uma conversa sem wi-fi, uma foto borrada, um encontro semstories, carrega em si a potência de fazer pensar. E sentir. E estar.

Referências

Bennett, J. (2010). Vibrant matter: A political ecology of things. Duke University Press.

Gamble, R., Hanan, J., & Nail, T. (2019). What is new materialism? Angelaki, 24(6), 111–134.

Latour, B. (1994). On technical mediation – Philosophy, sociology, genealogy.Common Knowledge, 3(2), 29–64.

Lemos, A. (2021). A tecnologia é um vírus: pandemia e cultura digital. Sulina.