Pensatas

Tecendo Redes: Tecnopolítica e o Jogo Geopolítico de Algoritmos e IAs

Pensata 404 – Edição 04 – por Dalvacir Andrade

Nossas pensatas são discutidas no Lab 404, mas refletem a opinião pessoal.


A aceleração dos avanços tecnológicos e das disputas políticas globais tem evidenciado a complexidade das redes sociotécnicas que estruturam nosso presente. A Teoria Ator-Rede (TAR), desenvolvida por Bruno Latour e outros teóricos, oferece uma lente analítica potente para compreender esses imbróglios, recusando as separações tradicionais entre natureza e cultura, ciência e política, humano e não- humano. Em Jamais fomos modernos (2019 [1991]), Latour argumenta que a modernidade se construiu sobre a ilusão de purificação dessas esferas, enquanto, na prática, a proliferação de híbridos — associações que cruzam essas fronteiras — sempre esteve presente.

Em Investigação sobre os modos de existência (2019 [2012]), Latour avança em sua análise ao propor que as redes não são apenas composições heterogêneas de humanos e não-humanos, mas são também atravessadas por diferentes regimes de existência, cada um operando com suas próprias regras, valores e lógicas de legitimação. Assim, o reconhecimento da agência distribuída entre atores heterogêneos é fundamental para entender fenômenos contemporâneos, como o desenvolvimento de tecnologias de Inteligência Artificial (IA) e as controvérsias que as acompanham. Mas, ao analisar disputas tecnológicas, não basta mapear atores e relações: é necessário considerar os diferentes modos pelos quais a tecnologia, a economia, a política, o direito, entre outros modos, se articulam e se reconfiguram mutuamente.

As IAs emergem como atores não-humanos resultantes de uma rede complexa de tecnologias, interesses econômicos, políticas e agências algorítmicas. Sua existência está intrinsecamente ligada a materialidades como dados massivos, infraestruturas de computação em nuvem e modelos avançados de sistemas de aprendizado profundo. Esses elementos, ao se interconectarem, formam um ecossistema tecnopolítico em constante transformação, no qual diferentes forças disputam o controle e a orientação dos processos automatizados.

Nessa rede em constante construção, diversos atores intervêm e influenciam sua trajetória. Desenvolvedores programam algoritmos, investidores injetam capital para garantir a escalabilidade da tecnologia, governos tentam regular suas aplicações e usuários interagem com seus outputs, muitas vezes, sem compreenderem as camadas de mediação envolvidas. Esses diferentes agentes, humanos e não-humanos, participam de uma intrincada rede de relações que molda a maneira como as IAs operam e se inserem no cenário geopolítico e socioeconômico global.

Recentemente, assistimos à ascensão da DeepSeek, uma startup chinesa focada em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias avançadas, especialmente nas áreas de inteligência artificial e big data. Seu crescimento ocorre em meio a tensões e disputas que se assemelham a uma “nova guerra fria”, na qual a tecnologia se tornou um dos principais campos de competição geopolítica. Países como EUA e China competem não apenas por poderio militar e influência econômica, mas pelo controle das infraestruturas digitais, da inteligência artificial e dos fluxos globais de dados.

A corrida tecnológica entre essas nações tem implicações diretas para a privacidade, as soberanias nacionais e a justiça social. O monopólio de certas tecnologias pode ampliar desigualdades entre países, limitando a autonomia de nações periféricas e reforçando uma ordem global centrada no domínio de poucos. Nesse cenário, a questão não é apenas quem detém a tecnologia, mas como ela é utilizada para estruturar novas formas de poder e exclusão.

A perda de trilhões de dólares por empresas de tecnologia norte-americanas, provocada pelo sucesso da DeepSeek e sua notável capacidade de processamento com recursos e investimentos consideravelmente menores, revela como essas redes são relacionais e vulneráveis a dinâmicas diversas, sobretudo, econômicas e políticas. Nelas, recursos materiais, financeiros, regulação estatal e decisões empresariais se entrelaçam de maneira imprevisível, demonstrando a ação de uma rede sociotécnica que mobiliza diferentes modos de existência.

Destaca-se nesse cenário a questão das Big Techs e seus tecnocratas atualmente alinhados ao governo de Donald Trump nas investidas para a construção de um mundo à sua imagem. Aqui, ressalta-se que algoritmos e outras tecnologias frequentemente refletem uma visão limitada do humano — um modelo masculino, heterosexual, branco, ocidental — que desconsidera diversidades e desigualdades estruturais. A decisão da Meta de abandonar a verificação de conteúdos falsos acentua esse cenário, permitindo a proliferação de desinformação e afetando diretamente os debates democráticos.

Diante disso, além das tensões econômicas e políticas, delineia-se um momento de reorganização das formas de dominação e controle. A “nova colonialidade” já não ocorre apenas por meio da exploração territorial ou do domínio direto, mas se impõe também pelo poder exercido sobre infraestruturas digitais, dados e algoritmos. Grandes conglomerados tecnológicos extraem valor dos dados de bilhões de usuários e moldam as condições de possibilidade da informação e da comunicação global.

Outros exemplos desse fenômeno incluem as investidas de Elon Musk na política global. No Brasil, por exemplo, sua atuação tornou-se um fator na disseminação de discursos de extrema-direita e questionamento do sistema judiciário, enquanto, na Alemanha, ele entrou em confronto com políticas governamentais e declarou apoio ao partido da extrema-direita poucas semanas antes das eleições federais. Esse tipo de intervenção ilustra como atores tecnológicos, políticos e econômicos se entrelaçam, reforçando dinâmicas de poder que desafiam estruturas estatais e democráticas.

Nesse ínterim, podemos ver o choque entre modos de existência distintos: enquanto o modo político das democracias tenta estruturar legislações para conter os efeitos destrutivos da desinformação, o modo econômico das plataformas digitais responde a incentivos baseados no engajamento e na maximização do lucro, muitas vezes se opondo à regulação estatal. Essa ação não deve ser compreendida apenas como uma escolha mercadológica, pois trata-se também do triunfo de um regime econômico sobre um regime político que, fragilizado, perde força na mediação do espaço público digital.

Diante dessas complexidades, a análise das IAs sob a perspectiva da TAR permite mapear as forças em jogo e entender como redes tecnológicas e sociais influenciam decisões, políticas e narrativas. O impacto da DeepSeek e outras IAs reflete disputas de poder, interesses corporativos e agendas políticas, sendo um ponto crucial para compreender a dinâmica da atual economia de dados e o papel dos algoritmos na construção de novas formas de controle e governança.

Retomando a metáfora latouriana do fio de Ariadne que tece as tramas sociais atravessadas pela “proliferação dos híbridos” (Latour, 2019), descrever essas redes torna-se essencial para navegar por labirintos tecnopolíticos cada vez mais densos. No entanto, se os híbridos são múltiplos e coexistem em diferentes regimes de existência, como articular suas disputas de forma produtiva? Em Investigação sobre os modos de existência, Latour propõe a ideia de uma diplomacia ontológica, na qual diferentes modos de existência negociam formas de convivência sem a imposição unilateral de um sobre o outro.

Esse desafio se torna ainda mais urgente no contexto da IA: como estabelecer um contrato sociotécnico que leve em conta não apenas interesses econômicos e políticos, mas também modos de existência éticos, jurídicos, ecológicos, socioambientais e das diversidades? Se as tecnologias desafiam as dicotomias modernas, nossas análises e intervenções também precisam adotar um olhar transdisciplinar, revelando conexões e disputas que moldam o futuro digital e planetário.

Referências:

Latour, B. (2019). Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica (1ª ed.). Editora 34. (Originalmente publicado em 1991)

Latour, B. (2019). Investigação sobre os modos de existência: Uma antropologia dos

modernos (1ª ed.). Editora Vozes. (Originalmente publicado em 2012).